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Nova “troika” na saúde

No passado dia 19 do corrente mês de Junho, o Observatório Português de Sistemas de Saúde (OPSS) tornou público o Relatório de Primavera 2018, no qual são revelados dados preocupantes sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS).

O que surpreende neste documento não são tanto as conclusões a que chega – a maior parte das quais confirma o que outros parceiros e instituições do sector e a própria comunicação social têm vindo a denunciar ao longo dos últimos três anos –, mas a abordagem científica e imparcial que faz aos problemas detectados, garantida por uma rede de investigadores e instituições académicas de altíssima qualidade.

Ora, entre outras e variadíssimas afirmações, o Relatório diz muito claramente o seguinte:

- Que a dívida do SNS é hoje maior do que aquela que existia quando a Troika chegou a Portugal, em plena crise financeira;

- Que há uma manifesta falta de investimento do Estado no sector da saúde e que, por via disso, os hospitais não têm capacidade de renovar equipamento e de fazer contratação de pessoal, o que leva à degradação de infra-estrutras e a um não planeamento da reposição de equipamentos e de renovação de instalações;

- Que esta situação não permite aos hospitais dar resposta adequada às necessidades que os doentes têm e à variabilidade que pode acontecer na capacidade de resposta;

- Que os Cuidados de Saúde Primários (CSP) reflectem uma reforma por concluir e revelam carências estruturais, o que redunda no prolongamento das desigualdades de acesso entre ricos e pobres e das assimetrias regionais;

- Que, no período de 2017/2018, houve um marcado abrandamento na criação de USFs, em dissonância com o discurso oficial que identificava os CSP como uma prioridade política do Governo;

- Que os Cuidados Continuados Integrados (CCI) continuam longe de atingir a cobertura da população, designadamente ao nível dos cuidados pediátricos;

- Que falhou a intenção do Governo de alterar o paradigma dos cuidados de saúde prolongados, privilegiando e reforçando o acompanhamento em casa (cuidados domiciliários) em detrimento do internamento, como se alcança do facto de, em três anos, as vagas de cuidados continuados em casa ter diminuído 10%;

- Que continua por concretizar a promessa do desenvolvimento do Estatuto do Cuidador, fundamental para a domiciliação dos cuidados continuados;

- Que a crise no sector hospitalar continua, não se havendo corrigido ainda os impactos negativos produzidos pelas medidas adoptadas no período de austeridade; e

- Que as despesas com profissionais de saúde estão abaixo da média dos países desenvolvidos, problema que, obviamente, se agravou com a passagem do horário de trabalho de 40 para 35 horas.

Por tudo isso e pelo mais que consta do documento em apreço, extrai-se esta alarmante conclusão: “O SNS está a afundar-se” e “os hospitais estão cada vez mais aprisionados pelas ARS e pelo Ministério da Saúde”, sendo que este está totalmente manietado pelo Ministério das Finanças (MF).

Resulta, pois, do dito relatório esta ideia força: na prática, na área da saúde, tudo se passa como se Portugal não se tivesse ainda libertado da intervenção externa e como se a defunta Troika tivesse sido substituída pelo todo poderoso e centralista MF.

E pode também retirar-se uma outra ilação: enquanto se não empreender uma verdadeira reforma do Estado e da Administração Pública, jamais em Portugal será possível a certeza de que valorizar a saúde dos portugueses representa um verdadeiro investimento no que de mais importante tem o país – as pessoas.

Nesta ordem de ideias, intui-se bem que congelar as reformas dos hospitais e dos cuidados de saúde é congelar o desenvolvimento nacional e limitar de forma inadmissível o direito fundamental à saúde e o respeito devido à dignidade humana.

Eis porque o garrote financeiro à saúde, que o Relatório da OPSS confirma, deve ser eliminado sob pena de pôr em crise o próprio SNS, sem dúvida uma das maiores conquistas democráticas do regime abrilista.

Seria uma triste ironia do destino que uma das forças políticas que mais contribuiu para a criação deste serviço público – que teve justamente no recém falecido Dr. António Arnault o seu mentor e o seu mais estrénuo lutador – fosse agora o seu principal coveiro. Sobretudo depois do aviso sério e bem fundamentado do aludido Relatório de Primavera.


Autor: António Brochado Pedras
DM

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29 junho 2018