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No dia do Pai

1. Quero hoje, mais uma vez, prestar homenagem ao meu Pai. Vítima da mentalidade do tempo, que diversas vezes recordava – «manter um filho na escola é como ter o burro preso à argola» –, cedo entrou no mundo do trabalho. Desenvolveu a sua atividade na área da construção civil como trabalhador por conta de outrem. Desejoso de uma vida melhor para si e para os seus, algumas vezes tentou a sorte fora da área da residência. Esteve em Lisboa, para onde foi de bicicleta a pedal. Emigrou clandestinamente para a França. Mas as saudades da família cedo o faziam regressar a casa. 2. Profundamente religioso, tinha a ânsia de saber e possuía uma grande memória. Pertenceu a uma congregação mariana sedeada na basílica de S. Pedro do Toural, em Guimarães, onde me levou algumas (poucas) vezes. Não faltava às pregações, na igreja paroquial, e em casa procurava dizer-nos o que tinha ouvido, reproduzindo, à sua maneira, até o latinório que saía do púlpito. Todos os dias, à noite, reunida a família, era ele quem votava o terço, cabendo à Mãe a tarefa da ladainha, no «latim» que tinha aprendido. Rezava diariamente, de forma audível, orações da manhã e da noite que a Mãe lhe tinha ensinado. 3. Houve tempos em que nos levava a ver uma peça de teatro, as Reisadas, num salão junto ao antigo Campo de Tiro do Pevidém. Ele mesmo sabia de cor muitas das intervenções dos personagens. Com ele entrei, pela primeira vez, no Museu Martins Sarmento, em Guimarães, e subi ao Castelo. Exigiu que cada um dos cinco filhos frequentasse as quatro classes da Instrução Primária, num tempo em que muitos não frequentavam a escola e outros se ficavam pela terceira classe. Não contente com isso, pressionava-nos para que prosseguíssemos estudos. Vivendo do produto do seu trabalho e do trabalho da Mãe, foram grandes os sacrifícios que ambos fizeram. Estou-lhes muitíssimo grato. 4. Não posso deixar de recordar algo que já um dia publiquei neste jornal: a sua prisão pela GNR do posto de Guimarães. Estávamos em 1944. Sofriam-se os efeitos da II Guerra Mundial. Eram grandes as carências alimentares. Nesse tempo vivíamos na Ponta do Campo, no limite de S. Jorge de Selho (Pevidém)/Gondar. Juntamente com uns amigos meu Pai foi a pé, de noite, a Pico de Regalados, no concelho de Vila Verde, comprar milho. No regresso, a poucos quilómetros de casa, surpreendeu-os uma patrulha da GNR e exigiu que levassem o milho para a esquadra, em Guimarães. O Pai não acatou a ordem. Ou o levo para dar de comer aos meus filhos ou não o levo para parte nenhuma, ripostou. E atirou o saco ao chão. Agrediram-no à coronhada e prenderam-no. Sabedores da notícia, ficámos consternados. Aconteceu de, nessa altura, passar em frente a casa uma outra patrulha da GNR. A Maria Zé não se conteve que não gritasse da varanda: Ladrões! levaram preso o meu paizinho! Recordando os ominosos tempos da II Guerra Mundial costumava rematar dizendo: que sempre lembrem mas nunca cá tornem. Recordo isto, não para avivar feridas, que há muito cicatrizaram, mas para, neste Dia do Pai, prestar, uma vez mais, homenagem ao meu e a todos os Pais. 5. Foi meu Pai um homem corajoso, para quem não havia obstáculos intransponíveis. Firme nas suas convicções, não sabia o que fossem respeitos humanos. Quadra-lhe bem o que de si mesmo escreveu Sá de Miranda, em carta a D. João III: «homem dum só parecer,/ dum só rosto, uma só fé,/de antes quebrar que torcer». Gostava de recitar os três últimos versos de um poema de Simões Dias: «ó filhos, vós não pagais,/ nem que de rastos vos visse,/ um beijo dos vossos pais». Tento, hoje, amortizar a dívida.
Autor: Silva Araújo
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19 março 2020