No crepúsculo da tarde, desfrutando ainda da acalmia proporcionada pelo tempo de férias, dei por mim a pensar, entre outros assuntos, no imenso burburinho produzido na comunicação social e na classe política pelo convite, entretanto já retirado, a Marine Le Pen para vir a Lisboa falar na Web Summit.
De tudo o que pude ler e ouvir, chego à conclusão que uma parte da esquerda só entende a democracia quando não tem de enfrentar os seus detratores, sobretudo se eles se situam nos antípodas do seu espetro ideológico. Na verdade, em diferentes momentos, não lhe vi a mesma oposição às visitas que os ditadores Fidel Castro e Hugo Chavez fizeram ao nosso país. Nem tão pouco avisto a mesma relutância quando se trata de criticar Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte, ou de Nicolás Maduro, presidente da Venezuela.
Não comungo das ideias de Marine Le Pen, não tenho qualquer simpatia pela sua personalidade e considero-a uma demagoga e uma ameaça real para o futuro da Europa pela intolerância, racismo e xenofobia que defende. Contudo, como a liberdade de expressão é uma virtude intrínseca e um princípio básico da democracia, não posso concordar nem com a intolerância para a defender, nem para dar combate sem tréguas aos seus possíveis carrascos.
Um pouco depois, regozijei-me com as notícias vindas do outro lado do Atlântico que me dizem que mais de trezentos órgãos de comunicação social norte-americanos, numa iniciativa ímpar iniciada no Boston Globe a favor da imprensa livre, deram uma resposta inequívoca a Donald Trump contra o autoritarismo. O presidente americano, poucos dias antes, tinha considerado a comunicação social como inimiga do povo.
Ainda arrebatado com as novidades do Novo Mundo, fui parar aos recentes números vindos a público sobre o crédito ao consumo em Portugal. Cerca de vinte milhões de euros são concedidos diariamente a quem os solicita para os mais distintos fins como comprar carro, ir de férias ou outros destinos mais ou menos supérfluos. Não estaremos a cair em aventureirismos excessivos? Já teremos esquecido os erros de um passado ainda não muito longínquo?
Um simples e breve esforço de memória transporta-me rapidamente para os tempos do consulado do último governo de José Sócrates. Tudo era fácil, não havia impossíveis e o resultado foi o que todos sabemos. Famílias endividadas, insolvências em catadupa e o país a caminho da bancarrota, tendo culminado com o pedido de ajuda externa, com as consequências que ninguém devia esquecer.
Quase disposto a concluir esta divagação, ainda fui parar à greve dos enfermeiros e ao seu braço-de-ferro com a tutela sobre a negociação das carreiras da classe e à insistência dos professores na contagem total do tempo de serviço para efeitos de progressão.
Se uns e outros advogam que tudo lhes foi prometido pelo Governo e que só agora este se lembrou que não tem dinheiro para satisfazer as promessas, como desatar tamanho nó? E que dizer das ameaças dos sindicatos sobre a pressão que irão fazer sobre os partidos que suportam a atual solução governativa para não viabilizarem o Orçamento do Estado para o próximo ano, se estas reivindicações não forem satisfeitas?
Nesta sucessão de pensamentos, ainda me veio à ideia o título do meu último texto neste jornal – Inquietante bonança – e de imediato aferi da sua oportunidade.
Na realidade, a aparente quietude destes dias quentes de verão não passa de um falso remanso.
A atitude intolerante de todos aqueles que esquecendo honras e louvores a uns tantos ditadores se comportam de maneira totalmente oposta quando em questão estão personagens idênticas, mas de sentido contrário; o perigoso endividamento do povo português e as nefastas consequências que pode acarretar; a proliferação de greves e os presságios sindicais sobre a viabilidade do próximo Orçamento do Estado são factos muito preocupantes.
Se a tudo isto juntarmos a fragmentação partidária à direita do espetro político português, de que é exemplo o recente anúncio de um novo partido patrocinado por Pedro Santana Lopes, após ter abandonado o PSD, é de prever um fim de estação verdadeiramente escaldante.
Autor: J. M. Gonçalves de Oliveira