Lufico, norte de Angola, 23 de dezembro de 1967, vésperas de Natal. o nosso primeiro Natal em tempo de guerra.
Éramos cento e cinquenta jovens, verdes e frescos, com braçadas de rosas, esperanças e sonhos para ofertar à vida; porém, nos acompanhava a certeza de que pouco ou nada vale a pena, quando por detrás dos olhos das pessoas se adivinham tugúrios de cobras assanhadas e nos sentimos fragilizados e confundidos só porque somos justos e humildes e vítimas na mão de homens cujo valor se define somente por iniquidades e confrangimentos.
Sabíamos demasiado bem que o nosso Natal nunca podia ser como ansiávamos que fosse – um apelo à ternura, à solidariedade, à partilha e à paz – vivido que era na frente da guerra; no entanto, mesmo sem neve, nem presépio, nem música, nem pinheiro florescente, nem missa do galo, este Natal não seria para nós um natal de angústia.
Longe, muito longe de tudo, lá nos confins do medo e da raiva, apenas connosco a certeza de sabermos vencer com um sorriso, uma promessa de vida a distância líquida que nos separava da alegria frenética e saudável das pessoas arrastando consigo apressadamente o natal das montras e das prendas para casa; sobretudo, ainda viva em nós resistia uma vontade indómita de sentarmos à mesa, na Consoada, o mundo sem armas, sem ódios, sem fome, com paz.
Lembro-me muito bem dessa noite de Natal, pois não havia estrelas no céu como sempre em noites de cacimbo no norte de Angola; e o pequeno horizonte fechado que era o nosso, todo nosso, ganhava o aspeto lúgubre de um oceano e tempestade, enquadrado, apenas, por muitos e altos montes rudes e misteriosos.
Fazia calor – calor denso e pegajoso, tropical que nos arranhava a pele e assanhava os ossos; mas nós sabíamos bem até onde podíamos manter a nossa resistência em vencer, combatentes que éramos, as circunstâncias adversas de um Natal sem estrelas e da frustração de nos sentirmos como crianças órfãos, enjauladas por detrás das vidraças, loucas de alegria à espera de guloseimas e prendas.
E chegou a Grande Noite. Cobrimos o chão da parada de flores, melhorámos até onde pudemos a nossa ceia, mas sem a ementa e as iguarias habituais, cobrimos as mesas do refeitório de branco e, de especial, à sobremesa apenas, um prato de arroz doce, um gomo de bolo-rei e um cálix de vinho do Porto; e porque o gerador se avariara inesperadamente não houve luz e, então, acendemos todas as velas e lamparinas que possuíamos para darmos a luminosidade possível à nossa Consoada.
Como nada tínhamos para ofertar uns aos outros, longe como estávamos de tudo, serviu-nos o calor de um sorriso, duma palavra amiga, dum abraço que, nas circunstâncias, mais valeram do que todo o ouro do mundo; e cantamos, cantamos muito como uma família, uma grande família que éramos impondo-se a voz do sangue: rir com os que riem, chorar com os que choram, repartir o albornoz e o sal – ter um Natal de amor, de comunhão entre todos obviamente.
O almoço do dia seguinte, o dia de Natal, mais não consistiu do que de meio frango no churrasco para cada boca e muitas batatas fritas, tudo regado com dois copos de tinto, vindo lá dos confins do mundo que era a nossa terra; e para remate do repasto um segundo gomo de bolo-rei sobrado da véspera, mas já sem o acompanhamento do cálix de vinho do Porto.
Este foi para nós um Natal diferente, porque um Natal em tempo de guerra; mas, seguramente o mais verdadeiro Natal das nossas vidas, porque mais nos aproximou uns dos outros e do nosso mundo de fragilidades e emoções; um Natal que nos veio com a grande lição de humanidade e amor: saber rir, chorar e sofrer com os outros, quando eles também sabem rir, chorar e sofrer connosco.
Braga, norte de Portugal, 23 de dezembro de 2020, vésperas de Natal; o nosso primeiro Natal em tempo de pandemia; um Natal com confinamento, distância social, máscara, de negação de convivência familiar e de privação de afetos e emoções partilhadas.
E sendo o Natal a festa por excelência da partilha, dos afetos, da reunião familiar e do amor este será um Natal verdadeiramente atípico e castrador; obviamente um Natal em tempo de guerra que marcará as nossas vidas para sempre, como aqueloutro Natal longínquo que vivi em 1967, no Lufico, norte de Angola.
Todavia, assim sendo, dele façamos um verdadeiro Natal do coração, ou seja, de esperança, de paz e de amor.
Então, até de hoje a oito.
Autor: Dinis Salgado