É com a mesma frase por que começam os Evangelhos de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo cada um dos Evangelistas, que achei por bem dar título a esta crónica. Isto, porque nos tempos em que eu era criança, parte das famílias católicas rezavam o terço do rosário antes da deita. Sendo uma prática que, daí para cá, se foi desvanecendo ao longo dos tempos e cujos motivos são por demais conhecidos de todos. Falo das novas tecnologias; da televisão; dos aliciantes apelos ao ócio e lazer; do culto da diversão diurna e noturna; do agnosticismo e ateísmo crescente, do apagão dos valores ancestrais nas sociedades de hoje, etc.
Ora, naquele tempo – já lã vão quase de 70 anos – rezar o terço significava cumprir um ritual diário no seio familiar. Porém, interpretar o significado dos cinco mistérios, ou pensar no conteúdo das orações recitadas, era coisa rara. Tratava-se do encadear de uma ‘lengalenga’ de adormecer espíritos, decorada a preceito no catecismo, a qual habitava o subconsciente de cada um. Sobretudo, no da criançada para quem recitar o terço era, como se diz hoje, uma seca, embora soubessem palavras certas. Já, atualmente, muita gentinha que vai à Igreja apenas mexe os lábios para não parecer mal.
Com efeito, por essa altura – em fase de Catequese e Escola Primária – tinha um amigo, o Zequinha, de numa família vizinha da minha, cujo irmão era seminarista e em cujo lar deixar de rezar o terço, diariamente, estava fora de questão. Cansadíssimos das lides diárias, sempre que era chegada a hora, todos acatavam as ordens do pai e da mãe: - “vá, vamos lá rezar o terço!”. E, às vezes, até eu era apanhado na onda, com a esperança de estar mais uns minutinhos com o meu amigo.
Era sempre a filha mais velha, a Marianinha, que ia desfiando as contas, ainda que estando todos meios ensonados: – Ave Maria cheia de graça…” (e logo interrompida pela progenitora) – “ó Zequinha, deste o recado ao se João?” – “dei, mãe” – responde o rapaz. – “Santa Maria Mãe de Deus…” (e nova paragem, desta vez o pai) – “ó Sãozita, levaste as minhas botas ao sapateiro?” – E resposta da mocinha: – “levei, meu pai”. Prosseguindo a reza, a Marianinha lá continuava: – “Glória ao pai, ao Filho e ao Espírito Santo…, Pai Nosso que estás no Céu…” (e de novo a mãe): – “ó Rosalina, puseste o bacalhau de molho?” – e resposta dela: – “sim, sim, minha mãe”. – “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida doçura e esperança nossa…” (e nova pausa, desta vez do marido): – “ó mulher, amanhã lembras-me daquilo que falamos ontem?”. – “Está bem homem, eu lembro!”. E por aí adiante. Assim se rezava o terço, grosso modo, aos solavancos pelas preocupações diárias próprias de qualquer núcleo familiar que se prezasse.
Lembro-me de ver o meu amigo algo incomodado, não por ter de recitar o terço, mas pelos cravos que cobriam as suas mãos e de – um belo dia, a minha saudosa mãe o ter aconselhado a rezar três Pai Nossos, Ave Marias e Santa Marias, mas com toda a fé e devoção, ao S. Bentinho. Só que teria de o fazer de joelhos e todos os dias à meia-noite.
Uns dias depois, a mãe dele encontrou a minha e, como amigas de infância, falaram acerca dos filhos. E a dele lá foi dizendo: – “por mais que uma vez encontrei o meu Zequinha no quarto, à meia-noite, de joelhos e mãos direitas, a rezar. E quando lhe perguntei para quê, se já tinha o tinha feito, respondeu-me que havias sido tu quem lhe recomendou fazê-lo, a essa hora. E queres saber a melhor? É que ele virá mostrar-te as mãozitas, limpinhas daqueles comedões. Se foi milagre, não sei!”. Aí, a minha santa mãe respondeu-lhe: “a fé, às vezes, move montanhas”.
E que tal, se em 2022 nos afirmarmos todos com mais fé em Deus? implorando-Lhe – fervorosamente – que nos livre do maldito vírus, seja ele ‘Delta’, ‘Ómicron’ e demais variantes que tanto nos consomem? Quem sabe se orando, com alguma da humidade e fervor de outrora, não obteremos d’Ele tão preciosa graça!
FELIZ ANO NOVO
Autor: Narciso Mendes