Andava por ali aquela senhora de idade. Tirava duma saca de plástico pedaços de pão e migalhas. Desgrenhada e sem enfeites de mulher, parecia-me muito velha. Mas não era tão assim, como adiante se verá. À sua volta muitas pombas e alguns pardalitos, comiam no chão da laje dura, o miolo mole da farta oferta. Dois rapazolas questionaram a velha dizendo-lhe: estás (que falta de respeito!) a alimentar esses ratos voadores e não vês o mal que fazes? A velha olhou para mim como que a pedir socorro, para ver se eu tomava a sua partida; ao meu silêncio maneou a cabeça coberta com um gorro por onde espreitavam as gaforinas brancas como meninos que espreitam à janela proibida.
Malcriados, é o que são. Coitadas das pombinhas, se não fosse eu vir aqui dar-lhes de comer, morriam de fome. Ratos voadores, onde se viu! A senhora, disse-lhe eu, talvez não saiba, mas as pombas são portadoras e transportadoras de várias doenças graves, podem causar epidemias… ora, quem disse isso? – ripostou ela. E continuou, as pombinhas estavam no altar de Nossa Senhora de Fátima, são o símbolo da paz e abençoadas por Deus. Olhe que são o símbolo do Espírito Santo. Arregalou-me os olhos e pelo brilho que se desprendia da indignação, vi que não era assim tão velha como o desleixo no vestir deixara parecer.
Como podem ser ratos voadores?! Quem as alimenta nestes dias de geada? Onde podem ir buscar a comida para si e para os borrachinhos, não me diz? Elas são criaturas de Deus. Não podia contestar esta teofilantropa pela mesma razão que nunca ninguém convenceu um ateísta a ser teísta. Fiquei a pensar e não sei o por quê desta analogia: comparei estas pombas que não precisam de trabalhar, que não necessitam de voar até às searas, que não cuidam de caprichar no sustento próprio e para a sua criação, ao que alguns desempregados que se afizeram aos subsídios. Também há quem encontre nos subsídios os bocados de pão e até as migalhas para subsistir.
O estado providência toma aqui o lugar da velha das migalhas. Não falo naqueles que querem emprego e não apenas subsídio. Estes encontram no emprego a dignidade do ordenado e não a vergonha da esmola que, na verdade, é um subsídio. Estes não são pombas, são águias que voam alto na mira de encontrar a dignidade perdida, aquando da perdida do trabalho. Estes não estendem a mão, levantam o braço para produzir e olhar com orgulho para o dinheiro que traduz uma dignidade.
Mas há os que pedem no novo emprego que declarem inaptidão para continuarem a ser desempregados: são as pombas que já não voam de pombal em pombal; para quê se têm ali à mão e sem qualquer esforço a alimentação dum qualquer distribuidor de migalhas? E os subsídiodependentes também já não procuram outros locais de trabalho. Daí a analogia. Fico surpreendido quando vejo anúncios de emprego e os lugares ficarem vagos! Fico surpreendido quando oiço dizer a um desempregado, enquanto me derem subsídio, não trabalho.
São estas as pombas que já não querem voar para outros beirais. Tenho imensa pena de quem quer trabalhar e não tem trabalho. Não tenho pena alguma daqueles que se habituaram a viver do subsídio. O Homem só deixou de ser escravo quando o trabalho lhe foi pago. Com a remuneração, ganhou a dignidade. O dinheiro era seu, podia fazer dele o que quisesse. Esta independência tornou-o soberano de si mesmo; pode ser empregado da empresa sem ser criado do dono. Ao sentir-se assim livre e honrado, ganhou uma personalidade que o tornou um ser “único entre pares”. É isto que distingue o pão das migalhas.
Autor: Paulo Fafe
Migalhas

DM
15 janeiro 2018