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Memória e Identidade Das Estátuas

Por estes dias, a comunicação social tem dispensado a sua atenção ao derrube de estátuas, um fenómeno com ecos entre nós, nomeadamente com a notícia da selvajaria a que foi sujeita a estátua do padre jesuíta, António Vieira, no Largo Trindade Coelho, em Lisboa. Não vamos aqui dirimir os argumentos de tal contenda, já sobejamente conhecidos. Com efeito, é tarefa hercúlea, para não dizer impossível, justificar a vandalização acintosa do nosso património histórico, da nossa memória colectiva, que na sua essência é e há-de permanecer plural. Só por um egoísmo saloio nos podemos alguma vez arrogar na disposição de reescrever a história ou de julgar o passado à luz das concepções da actualidade. É forçoso que genuinamente nos saibamos situar no tempo, estudando pacientemente as circunstâncias a partir do acervo documental que chegou até nós, para que esse passado nos possa inspirar soluções inovadoras no presente e nos conduza a caminhos mais humanos. Que não se tenha medo da História, se me é permitida a evocação a Fidelino Figueiredo, e que, pelo contrário, a essa luz, não haja receio de arrepiar caminho, se for caso disso. Pois a História, mestra da vida e luz da verdade, nas palavras de Cícero, tem a sua justiça, nem sempre perfeita, é certo. Assim está a acontecer, por exemplo, com D. Diogo de Sousa: depois de ocupar merecidamente o trono da História, onde nem a traça nem a ferrugem chegam, eis que a Câmara Municipal de Braga toma a iniciativa de erigir monumento de homenagem ao antigo arcebispo de Braga, que será implantado no Campo da Vinha. Uma iniciativa que só enobrece a iniciativa dos proponentes, pois assim se recorda às gerações do presente o quanto somos devedores aos nossos antepassados, num espírito solidário que enriquece a nossa vida colectiva. Ao desprezo com que são tratadas hoje, a história contrapõe exemplos de verdadeira glorificação das estátuas. É o caso celebrizado por Cícero, quando defendeu os Sicilianos na acusação que estes dirigiram contra o seu governador, Licínio Verres, um político corrupto que os havia espoliado dos melhores tesouros, nomeadamente das belíssimas estátuas, estátuas de extremo requinte que havia em casa de Caio Heio, num sacrário antiquíssimo, herdado dos antepassados. Menciona-se um Cupido de Praxíteles, duas Canéforas de Policleto e um Hércules de Míron, todos eles artistas gregos de renome. Todo o povo de Messina, assim como seus visitantes, podiam fruir diariamente desta arte sem par, como se pode ler no discurso Das Estátuas (De signis). Este é o penúltimo discurso dos cinco que constituem a Segunda acção contra Verres. Não chegou a ser pronunciada no tribunal, em Roma, pois a primeira acção foi de tal modo demolidora que Verres se viu obrigado a fugir da cidade. Corria o ano 70 a. C. e foi deste modo que Cícero se guindou ao lugar de melhor causídico em Roma, o que lhe abriu as portas a uma promissora carreira política. Ora este acontecimento coloca-nos no caminho da cultura grega, onde a arte do retrato se terá iniciado pelo século IV a. C., com Lisipo e havia de conhecer grande desenvolvimento durante o período helenístico (330-100 a. C.). A arte da escultura, numa das suas vias de expressão, afasta-se do idealismo da representação e vai dando lugar à expressão das emoções, do sofrimento e da dor; para além do ideal de juventude, também aparece a representação da velhice. Ora este realismo do retrato vai acentuar-se em Roma. Lugar especial ocupam as representações dos imperadores, de corpo inteiro e difundidas por todo o império. Recorde-se, a título de exemplo, a representação de Nero com seu semblante de verdadeiro facínora. Mas estátuas, em si, levam consigo a efemeridade. Ao contrário dos livros. A este propósito, bem avisado foi o nosso infante D. Pedro quando, em 1439, recusa o levantamento de uma estátua honorífica, que o povo de Lisboa lhe queria erigir, segundo narra o cronista Rui de Pina (final do cap. XLIX da Crónica do Senhor Rey D. Affonso V). O infante, consciente da inconstância da gratidão humana, terá dito que viriam dias em que «vossos Fylhos a derrybaryam, e com as pedras lhe quebrariam os olhos». Uns séculos antes, o imperador romano Tibério, quando lhe quiseram erigir um templo na Hispania Vlterior, havia de dizer que, segundo narra o historiador romano Tácito, «o que importa é que digam que desempenhou bem o seu lugar, se não desprezá-lo-ão como um sepulcro» (Anais IV.38-39). Palavras estas na esteira do pensamento do imperador Alexandre Magno que, em Tróia, na Ásia Menor, diante do sepulcro de Aquiles, a quem desejava igualar-se como guerreiro, o inveja por este ter encontrado em Homero tão distinto arauto para cantar seus feitos.
Autor: António Maria Martins Melo
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4 julho 2020