A existência e reconhecimento da carreira de Medicina Geral e Familiar (MGF) em Portugal, desde o ano 1990, foi fundamental como alicerce para um Serviço Nacional de Saúde (SNS) capaz de assegurar cuidados de saúde a toda a população, de forma personalizada, na forma de Cuidados de Saúde Primários. Estes são, indubitavelmente, a porta de entrada para o serviço público de saúde e um direito adquirido de todos os cidadãos portugueses.
As vantagens do seguimento longitudinal por uma equipa de saúde familiar, com médicos e enfermeiros de família, são inúmeras e estão bem demonstradas em vários artigos científicos publicados ao longos dos anos. O seguimento ao longo de toda a vida, de forma holística e abrangente, abordando os problemas, agudos ou crónicos, físicos, psicológicos ou sociais, bem como a compreensão profunda do utente enquanto ser humano, e não apenas como portador de uma doença, são fatores-chave bem descritos previamente.
A temática da prevenção quaternária é de sobejo relevo, com a mestria própria dos médicos de família na na “arte de não fazer nada” (segundo Iona Heath), de ouvir e escutar o doente, esperar, evitando aplicar rótulos, evitando o sobrediagnóstico e sobretratamento (com a medicalização frequente de eventos adversos da vida humana).
No entanto, a nível dos Cuidados de Saúde Primários, assiste-se a uma exigência cada vez maior em termos de atividade assistencial e não assistencial. Para além de prestar cuidados a listas sobredimensionadas de pessoas, o médico de família de hoje vive afogado em burocracias (tais como elaboração de relatórios e registo de resultados de meios complementares de diagnóstico).
Assistimos, assim, a tempos de espera longos para marcação de consulta com a equipa de família e nos cuidados de saúde secundários do SNS o que, associado ao facto de, frequentemente, as consultas em entidades privadas terem menor custo relativamente às do público (em situações de seguros ou subsistemas de saúde), explica a preferência da população em solucionar as situações clínicas de forma mais célere nestas entidades. Segundo a Lei de Bases da Saúde, no ponto 1 da Base 2 (“Direitos e deveres das pessoas”), “todas as pessoas têm direito a escolher livremente a entidade prestadora de cuidados de saúde, na medida dos recursos existentes”.
Assim, o utente é livre de escolher se pretende ser acompanhado numa instituição pública ou privada ou ambas, pelo que se tem assistido a um aumento do número de seguros de saúde realizados, a um progressivo crescimento destas entidades, com maior número de locais prestadores de cuidados, que o SNS, com o seu orçamento e gestão pública, não tem conseguido acompanhar.
Com este seguimento fora do SNS, todo o acompanhamento longitudinal necessário a uma boa prática da MGF é perdido e a perceção da necessidade e benefícios do acompanhamento por estes profissionais diminui. Todavia, essa proporção de utentes mantém-se inscrita nos centros de saúde, sendo o motivo de permanência predominantemente burocrático – para solicitar meios de diagnóstico com comparticipação pelo SNS, mas que foram solicitados por entidades privadas, ou para solicitar emissão de baixa médica.
Tendo em conta toda a atividade especializada realizada pelos médicos de família, se um utente apenas recorre ao seu médico de família por motivos burocráticos, isto não será estar a utilizar mal os serviços? Será que não põe em causa todo o funcionamento do SNS, prejudicando os outros cidadãos? E não são os cidadãos os primeiros responsáveis pela sua própria saúde, individual e coletiva, tendo o dever de a defender e promover?
Entretanto, no âmbito dos projetos “Nascer Utente” e “Notícia Nascimento”, todos os recém-nascidos têm, a partir de 1 de setembro de 2016, médico de família logo após o seu nascimento, atribuído de forma automática. Apesar de ser uma iniciativa louvável para permitir acesso a cuidados de saúde ao cidadão vulnerável, será que os pais pretendiam este acompanhamento no SNS? Mais do que formas de paternalismo governativo, o essencial será a implementação de estratégias que fomentem a importância e benefícios da existência de um médico de família e a existência de alternativas assistenciais públicas para utentes que não pretendem este seguimento.
Em primeiro lugar, explicar que a recorrência sistemática a diversos especialistas médicos por motivos de consulta principalmente agudos e de resolução autolimitada, e o desconhecimento da importância de consultas de vigilância regular, aumentam a possibilidade de dano e uma falsa sensação de bom seguimento em termos de saúde. Dada a ideia generalizada da população de que o melhor médico é o que faz mais procedimentos na consulta ou o que pede mais meios complementares de diagnóstico, é crucial aumentar a literacia em saúde sobre este tema, explicando que nem sempre mais é melhor, tendo em conta que nem sempre os procedimentos têm benefício claro no seguimento do doente e podem, inclusivamente, causar dano. O papel do médico de família neste sentido, como advogado do doente, é de salientar.
Em segundo lugar, a possibilidade de justificação de ausência ao trabalho pelo próprio trabalhador (existente noutros países da Europa), bem como a alocação de alguns serviços públicos para o atendimento a utentes que não têm equipa de família por opção ou que não pretendem acompanhamento no SNS, seriam medidas essenciais para permitir que a população que ainda não possui acesso a equipas de família o possa obter.
Apesar de todos os benefícios supracitados, em Portugal, ter médico de família não é obrigatório. Há possibilidade de escolha, entre acompanhamento no setor público ou privado. A utilização eficiente dos recursos disponíveis no SNS é, sem dúvida, imperativa e a recorrência ao SNS por motivos exclusivamente burocráticos é desaconselhada, sob pena de duplicação de procedimentos, atos e consultas e incapacidade de resposta a quem necessita de resolução de situações verdadeiramente clínicas.
A existência de utentes ainda sem médico de família é uma realidade. Urge a adoção de estratégias de recurso e a contratação de mais profissionais nos cuidados de saúde primários, de forma a prestar cuidados de alto nível, com a confiança e a acessibilidade necessária, para que todos os cidadãos portugueses possam ter um médico de família, não de forma obrigatória, mas por escolha pessoal.
Autor: Joana Nuno