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Lucrar com a pandemia

É bem sabido: as situações de emergência – as que se verificam em consequência de tumultos nacionais ou internacionais, de crises económicas ou de catástrofes naturais ou sanitárias, por exemplo – favorecem uma generalizada condescendência em relação a decisões que, noutras circunstâncias, seriam intoleráveis. A crise global de saúde pública que temos vivido não oferece excepção. É por isso que vale a pena estar vigilante perante os que se querem aproveitar da pandemia para obterem benefícios ilegítimos. Os Amigos da Terra e o Observatório das Multinacionais têm vindo a denunciar o que consideram ser uma outra epidemia, menos visível, que segue o seu curso imparável por trás da do coronavírus: a “epidemia de lobismo”. No relatório intitulado Lobismo: A epidemia escondida[1], constatam que, enquanto os dramas humanos e o confinamento atraíam toda a atenção, os industriais e os porta-vozes do sector privado se apressaram a rentabilizar “uma boa crise”. Aproveitando a urgência e a excepcionalidade da situação, foram rapidamente tratar dos seus interesses junto dos decisores políticos, “às vezes com uma boa dose de cinismo”, pois os assuntos que os preocupam nada têm a ver com o contexto sanitário e social. Este actividade de pressão dos grupos organizados de interesses económicos visa – e esta é a sua primeira característica negativa – conseguir “o adiamento, a suspensão, o alívio ou a abolição das regulamentações sociais e ambientais”. Na maioria dos casos, “os lobistas apenas reciclam solicitações antigas, associando-as falaciosamente à pandemia”. Os Amigos da Terra e o Observatório das Multinacionais denunciam que eles tentaram, por exemplo, reverter medidas recentes, como o estabelecimento de normas de protecção ambiental mais rígidas para os automóveis, a proibição dos sacos de plástico ou a separação entre as actividades de aconselhamento aos agricultores e as de venda de pesticidas. A segunda característica, menos visível, mas mais perigosa a longo prazo, “consiste em capturar em benefício próprio as ajudas públicas directas e indirectas mobilizadas pelos governos no âmbito dos planos de salvação e de relançamento e impor as suas agendas tecnológicas e industriais para saírem vencedores no ‘mundo pós pandemia’”. Da indústria farmacêutica aos grandes negócios agro-industriais, passando pelas viaturas eléctricas e pelo digital, “muitas empresas adaptaram a estratégia e a comunicação para ficar com a parte de leão do enorme investimento público em vias de ser despendido sem uma verdadeira contrapartida económica, social ou ambiental”. Os Amigos da Terra e o Observatório das Multinacionais verificam que as profissões de fé ecológicas e os grandes discursos sobre a solidariedade se multiplicaram durante a crise do coronavírus, mas, frequentemente, não são mais do que um engodo. É que esta comunicação “positiva” é utilizada principalmente pelas grandes empresas para evitar a existência de legislação restritiva, como a que diz respeito às emissões de gases com efeito de estufa ou a que põe em causa os mecanismos financeiros e fiscais pelos quais as grandes empresas e os seus accionistas capturam a maior parte da riqueza. Como, em nome da urgência, as leis são aprovadas a correr, praticamente sem debate público e as escolhas importantes são feitas apressadamente e sem transparência, a gula dos que, como bem sintetiza a conhecida fórmula, privatiza os lucros e socializa os prejuízos, subsiste insaciável. A única forma de a travar é uma maior transparência nas decisões públicas e um atento e permanente escrutínio público. Muito activos no esforço de acabar com as moedas e as notas, a pretexto de que são perigosas transmissoras do coronavírus, têm estado os lóbis dos cartões bancários e das aplicações e plataformas. “Reinventar o dinheiro” diz o título principal da edição portuguesa da revista Forbes de Junho e Julho. “Agora, mais do que nunca, o pagamento é sem contacto”, propagandeia-se na capa. A eliminação das moedas e das notas e a generalização de meios de pagamento quase desmaterializados será, evidentemente, assaz lucrativo para bancos e para empresas do digital, mas prejudicará desde logo os mais pobres e os mais idosos que têm menos acesso às tecnologias ou menores aptidões para lidar com elas, para além de serem presas fáceis de vigaristas informáticos (a imprensa de anteontem noticiou que mais de uma centena de pessoas em todo o país tinha sido lesada por um grupo agora acusado da prática do crime de burla através da aplicação MB Way). Que, recentemente, tenha sido o primeiro-ministro socialista espanhol a apresentar uma proposta[2] para acabar com as moedas e as notas não deixa, por isso, de ser assaz bizarro. [1] https://www.amisdelaterre.org/lobbycovid/ [2] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/10606137/06/20/La-propuesta-del-PSOE-para-acabar-con-el-dinero-en-efectivo-se-da-de-bruces-contra-el-BCE-y-Bruselas.html
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
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21 junho 2020