Quando era ainda menino, ouvia muitas vezes da boca de alguns adultos, de rosto macilento devido ao pesado trabalho da semana, coberto de áspera barba, desconhecida da tesoura do barbeiro (e que lhes dava um cariz de homem sisudo, disciplinado, maduro, respeitoso e trabalhador), ouvia muitas vezes este dito: “Sabes, menino, quem bem faz a cama bem dorme nela.” Esse dito bailava por entre os carcomidos e negros dentes desses homens, não dados às ébrias pantominices dos restantes, tais como o jogo da malha, a sueca, o chincalhão… e outros jogos, por vezes fora de lei.
A assistir à brincadeira dos jogos, estavam sempre, loucas e em rubras gargalhadas, duas ou três canecas de barro vidrado de Barcelos, cheiinhas até às bordas de vinho tinto a trepar pelas vidradas malgas. Quando acabava uma, outra a substituía.
Do que me recordo ainda e bem, era a manifestação externa da personalidade destes adultos, que tinha o privilégio de cavar bem fundo, na nossa maneira de ser, de sentir e de agir, a sua ponderação, respeito e amor pelo trabalho. Eram uns héteros e bons educadores. Assim fossem (e muitos ainda o são, felizmente), os políticos e os religiosos.
Peguei no dito destes respeitosos trabalhadores e homens maduros “Quem bem faz a cama bem dorme nela” e comecei a brincar com tal dito para levantar, por detrás das costas do medo, a minha boa disposição. Desta inquieta e boa disposição, como a mariposa, que bate as asas, no sentido de alcançar a colorida e perfumada flor, namoriscando-a, assim saía da instável existência a fulgurante libertação do uno transcendental, inerente ao nosso ôntico ser. Do mesmo modo, o uno transcendental, libertado dos fatores bio psíquicos (unidade existencial), vai-se integrar, conectar e sintonizar, agora, no Uno Transcendente (Deus).
Desta libertação fulgurante vai seguir-se, agora, o encontro das nossas estruturas bio psíquicas (sistema nervoso, estruturas cognitivas, emocionais e comportamentais) intrinsecamente unidas, com a cantante fonte das relações transcendentais, tais como o bem, a vida, o amor, a verdade, a paz, a felicidade… Esta fonte não só vai regar e vivificar todos os relacionamentos da pessoa (a embaixatriz do ser profundo e natural) consigo mesma, com o social, cultural, com o mundo e com Deus. Também vai mudar, radicalmente, o sentido da sua vida existencial que, de fechado e em colisão com a sua ôntica natureza, se abre agora (cindindo a colisão), se integra, se conecta e se sintoniza, congruentemente, com a identidade do seu profundo ser.
É a nossa ôntica e natural natureza que, através dos seus categóricos imperativos (autónoma, livre e responsável) impõe à pessoa o dever de encontrar, pelos caminhos da superação, a fecunda planície do humanismo existencial, transcendental e transcendente (Deus). A melhor interpretação que me ocorre para o sábio dito “quem bem faz a cama bem dorme nela” é a da integração, conexão e congruência da nossa vida existencial com a nossa vida transcendental, ocasionando interiores incêndios de verdade, de amor, paz, felicidade… É o estágio para se viver uma eternidade com Deus.
Autor: Benjamim Araújo
Libertações fulgurantes
DM
25 outubro 2017