O centenário do nascimento de Primo Levi tem sido amplamente evocado pela imprensa de referência; a europeia e, particularmente, a italiana. “A 31 de Julho de 1919 nascia Primo Levi, o escritor italiano do século XX que todos, no mundo, deviam ter lido”, disse o escritor e jornalista italiano Ferdinando Camon, no diárioAvvenire. No mesmo jornal de inspiração católica, na quarta-feira, um professor de literatura, Giovanni Tesio, classificou Primo Levi como “um moralista clássico”, da têmpera de, por exemplo, Blaise Pascal, Michel de Montaigne ou Alessandro Manzoni. Um título do diário espanhol El Paísevoca, também na quarta-feira, o centenário do escritor de um modo eloquente: “Primo Levi, um escritor necessário, outros 100 anos mais” – o texto inclui diversas citações de um livro com um conjunto de entrevistas que o escritor concedeu a Giovanni Tesio pouco tempo antes de morrer no dia 11 de Abril de 1987.
Primo Levi é, de facto, um escritor singular que deve ser recordado. Uma razão seria suficiente: esteve preso em Auschwitz e sobreviveu para o narrar num tríptico de leitura moralmente obrigatória: Se isto é um Homem; A tréguae Os que sucumbem e os que se salvam. Também químico – ofício que ele diz, na página 161 do último livro da trilogia (D. Quixote, 2018), que o salvou algumas vezes de ter sido morto nas câmaras de gás –, o escritor cumpre com a sua obra aquilo que ele próprio designou por dever de memória.
Essa obrigação fez também com que, além de escrever, participasse em iniciativas para testemunhar e manter viva a lembrança do que foi o horror do Holocausto; para que os mais novos tivessem a oportunidade de encontrar pessoalmente alguém que dissesse: “Eu vivi-o”.
Em certa ocasião, uma criança italiana de onze anos escreveu-lhe, perplexa pela inacção dos alemães que tornou possível a Shoah. Queria ela saber se os alemães eram cruéis. Primo Levi respondeu que seria absurdo acusar todos os alemães da época e que seria ainda mais absurdo envolver na acusação os alemães de hoje. Porém, acrescentava ele, “é certo que uma grande maioria do povo alemão aceitou Hitler, votou nele, aprovou-o e aplaudiu-o, enquanto ele foi bem sucedido política e militarmente”. Isto apesar de muitos alemães, directa ou indirectamente, saberem o que acontecia nos campos de concentração e em todos os territórios ocupados, particularmente na Europa Oriental.
“Por isso, em vez de crueldade, eu acusaria os alemães da época de egoísmo, de indiferença e, sobretudo, de ignorância voluntária”. A acusação impunha-se, segundo o autor de Se isto é um homem, porque quem queria verdadeiramente conhecer o mal podia tê-lo conhecido e tê-lo dado a conhecer, mesmo sem correr riscos excessivos.
As atitudes de egoísmo, de indiferença e de ignorância voluntária não têm hoje consequências tão mortíferas, mas a sua prevalência contribui sempre para que o mal vá fazendo o seu insidioso trabalho sem sobressaltos. É por isso que a memória é um obstáculo à irradiação do mal.
O poema que se encontra nas primeiras páginas de Se isto é um Homemé uma imprecação contra os que se furtam a lembrar as vítimas indefesas das tragédias acontecidas, que são os mesmos que ignoram os mártires do presente.
SE ISTO É UM HOMEM
Vós que viveis tranquilos Nas vossas casas aquecidas, Vós que encontrais regressando à noite Comida quente e rostos amigos: Considerai se isto é um homem Quem trabalha na lama Quem não conhece a paz Quem luta por meio pão Quem morre por um sim ou por um não. Considerai se isto é uma mulher, Sem cabelos e sem nome Sem mais força para recordar Vazios os olhos e frio o regaço Como uma rã no Inverno. Meditai que isto aconteceu: Recomendo-vos estas palavras. Esculpi-as no vosso coração Estando em casa, andando pela rua, Ao deitar-vos e ao levantar-vos; Repeti-as aos vossos filhos. Ou que desmorone a vossa casa, Que a doença vos entreve, Que os vossos filhos vos virem a cara.
Destaque
As atitudes de egoísmo, de indiferença e de ignorância voluntária não têm hoje consequências tão mortíferas, mas a sua prevalência contribui sempre para que o mal vá fazendo o seu insidioso trabalho sem sobressaltos.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes