O encerramento dos Tribunais para férias judiciais é sempre um momento propício a reflexões sobre a Justiça.
Releio o discurso do Papa Francisco aos Juízes do Continente Americano, que Monsenhor Silva Araújo teve a gentileza de me enviar, sabendo que escrevo amiúde sobre o tema das TIC e smart cities.
Diz o Sumo Pontífice que hoje vivemos em cidades imensas, que se mostram modernas e até vaidosas. Cidades orgulhosas da sua revolução tecnológica e digital que oferecem numerosos prazeres e bem-estar para uma minoria feliz mas negam uma casa a milhares de vizinhos e irmãos, até crianças”.
A inclusão social está vertida em diretriz da Igreja pela Evangelii gaudium, 17 e).
A questão foi abordada na UM no passado dia 7 de junho, na sessão de estudo "Smart Cities/Smart Governance”, na qual tive a honra de ser orador juntamente com Maria L G Jiménez, Professora na Universidade de Málaga e Ana Fragata, diretora do FICIS, com moderação a cargo de Francisco Andrade e Isabel Celeste da Fonseca, professores e diretores de Mestrado da Escola de Direito daquela Universidade.
A professora Maria Jimenez, em consonância com as palavras do Papa, opinou que uma das questões cruciais na incorporação das TIC no espaço urbano, na cidade interface, é relativa aos procedimentos da participação na ação pública, exigindo-se a garantia de acesso de todos os cidadãos à mesma.
Diz ainda o Papa: “Sabemos que o direito não é apenas a lei ou as normas, mas também uma praxe que configura os vínculos, que de certo modo os transforma em “artífices” do direito todas as vezes que se confrontam com as pessoas e a realidade. E isto convida a mobilizar toda a imaginação jurídica, com a finalidade de voltar a pensar as instituições e de fazer face às novas realidades sociais que estamos a viver”.
Partilho da mensagem. Os princípios jurídicos são fonte de Direito. Passou a falar-se num bloco de juridicidade em vez de um mero bloco de legalidade. A moral cristã pode incorporar-se na realização da Justiça.
É neste contexto que entendo as notícias que dão conta que a França pretende banir a inteligência artificial das decisões dos juízes e o uso das tecnologias preditivas do comportamento dos juízes, através do impedimento da publicação de informações estatísticas sobre as decisões dos juízes, conforme vem estipulado numa passagem do artigo 33 da lei 2019-222 de 23/03/19 - programação e reforma para a justiça.
Enquadrando a questão, refiro que os últimos desenvolvimentos no domínio da inteligência artificial (IA), resultam de um melhor desempenho dos algoritmos de aprendizagem automática, que procuram representar por meio de técnicas estatísticas um determinado ambiente.
Os chamados algoritmos “preditivos”, baseados na constituição e na abertura progressiva, mas massiva e livre, das bases legais - open data - permitem oferecer um apoio à decisão jurisdicional. A justiça “preditiva” favoreceria a reorientação dos juízes em casos para os quais a sua especialização traz o maior valor agregado.
Essa tentação de produzir sentenças ex machina cai na resistência das palavras de Francisco. A justiça quer-se sensata não automatizada.
Não que regressemos ao tempo de “Chuan-tzu”. Italo Calvino no terceiro de seus " Six memos for the next millenium", narra o seguinte conto: Chuan-tzu era um especialista em desenhar. O rei pediu-lhe para desenhar um caranguejo. Chuan-tzu respondeu que precisava de cinco anos, uma casa de campo e doze funcionários. Cinco anos depois, o desenho ainda não tinha sido começado. Preciso de mais cinco anos, disse Chuan-tzu. Ao fim de dez anos, Chuan-tzu pegou no pincel e, num instante, com um único golpe, desenhou o caranguejo mais perfeito já visto.
A história de Calvino poderia representar o problema da necessidade de dar uma resposta judicial rápida, mas ao mesmo tempo interligada com a legítimas aspirações dos cidadãos, o adequado trade-off entre precisão e brevidade, uma Justiça eficiente.
A solução encontro no Papa Francisco “Estimados magistrados, desempenhais um papel essencial; permiti que vos diga que sois também poetas, sois poetas sociais, quando não tendes medo de «ser protagonistas na transformação do sistema judiciário baseado no valor, na justiça e no primado da dignidade da pessoa humana”.
Autor: Carlos Vilas Boas