“Os cuidados começam quando se reconhece a diferença. Reservo o nome «dadores de cuidados» às pessoas que estão desejosas de ouvir os doentes e de responder às suas experiências individuais. Os cuidados nada têm a ver com categorias. Quando o dador de cuidados transmite ao doente que se preocupa com a sua singularidade, confere significado à vida dessa pessoa” (Frank, 1991).
Pensar-se na morte não tem como correlato a morte em si mesma e sim a natureza da nossa existência. Não é a morte e sim o conhecimento de que haveremos de morrer o que pode gerar problemas. O doente em fim de vida faz um luto de si mesmo confrontando-se com a eminente própria finitude, entretanto deixa em aberto a reflexão da finitude do outro (Bahamondes & Modernell, 2018).
Entram em jogo inúmeros fatores de ordem subjetivo e intersubjetivo com variadas repercussões a todo nível – sensorial, emocional, afetivo, cognitivo e condutual. É possível abraçar com sentido de justiça tais condições apenas quando se tornam percetíveis as diferentes dimensões que entram aqui em jogo. Cuidar é assim entrar no mundo do outro respeitando-o na sua mais elevada legitimidade e autonomia.
Trata-se de uma relação eu-tu em que vamos ao encontro e deixamo-nos encontrar, num sentido profundamente igualitário e dialógico. Cuidar implica estabelecer uma relação com alguém, o que por sua vez nos remete a um mundo de intersubjetividade onde o multiverso dos sentires não admite grandes objetivações. Isto é, não se trata de uma relação sujeito-objeto e sim de um âmbito relacional onde tudo flui, sendo preciso estar atento e aberto.
Vida e morte são realidades interdependentes, dissonantes e congruentes, mas que não se sobrepõem uma à outra. Todos estamos em processo de morrer, no entanto algumas pessoas contam com um pré-anúncio dessa instância onde acontece a situação mais paradigmática da vida, única responsável pela morte: a morte como solução para a vida. Na sua expressão mais simples morrer é deixar de estar vivo.
Mas, enquanto legado filogenético, ontológico e cultural, trata-se duma experiência carregada de significado e singularidade (Bahamondes & Modernell, 2018). Assim sendo, quanto melhores as condições para acolher com naturalidade esse momento – isto é, sem dor, com todo o afeto disponível e o maior dos respeitos pela dignidade e autonomia da pessoa em questão – mais significativa a experiência de viver a própria morte.
Cada um de nós tem o direito e o dever de refletir sobre a consciência da certeza da morte. O paciente em fim de vida faz um luto de si mesmo ao tempo que antecipa a perda de quem ama.
Grandes possibilidades de reafirmação ou transformação abrem-se a partir desta experiência. O sentido de justiça no âmbito dos cuidados em fim de vida deve, necessariamente, ir de encontro a satisfazer todas as condições para que estes direitos sejam garantidos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Bahamondes, J. & Modernell, P. (2018) Vivir la propia muerte – Un caso de duelo sobre sí mismo. Psicooncologia II. Santiago de Chile: Nueva Mirada Ed.
Buber, M. (2014) Eu e Tu. São Paulo: Paulinas Editora.
Frank, A. (1991). At the will of the body: reflections on illness. Boston: Houghton Mifflin.
Autor: Pável Modernell
Justiça em fim de vida
DM
28 junho 2018