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Já não se escrevem cartas de amor

Quando em 1986 inaugurei aqui, sem cortar fita, botar discurso ou passar revista às tropas em parada que são o gozo e o gáudio de qualquer político em épocas eleitorais, estas crónicas semanais a que dei o nome de POSTAIS D'ARCADA foi a pensar na forma maravilhosa de comunicar, seja através de cartas e postais, seja de simples bilhetes, e se à época se sentiam já retrocessos evidentes nesse estilo de comunicação, hoje, o que está realmente na moda são as redes sociais, em grande parte sem esmero morfológico, sintático e estilístico. Ora, já desde as celebérrimas, ardentes e apaixonadas missivas de sóror Mariana Alcoforado ao oficial francês, ou as cartas de guerra de António Lobo Antunes a sua esposa Maria José, ou as Cartas do Meu Moinho de Alphone Daudet, ou os simples bilhetes, postais ou cartas da criançada no Natal ao Menino Jesus e ao Pai Natal que este nobre costume tem vindo abruptamente a perder adeptos, salvando-se ainda para glória nacional os consultórios sentimentais de algumas revistas cor-de-rosa; como igualmente a correspondência que, por vezes, é trocada entre responsáveis do governo, da política e de outras instituições para se evitarem fugas de informação ou irresponsabilidades futuras que, em português vernáculo, se designa por dar o dito pelo não dito. E porquê esta falta de gosto lusitano pela pena? Talvez porque, nos dias que correm, há cada vez menos quem ouse assumir a responsabilidade por aquilo que pensa, diz ou faz, quando a coisa dá para o torto; e, então, há que meter o rabo entre as pernas e caminhar de cócoras o que, infelizmente, em algumas arenas políticas e institucionais tem sido prática habitual. Já lá diziam os latinos que verba volant, scripta manent ou seja, as palavras voam, os escritos permanecem, o que nos adverte para o cuidado a ter com o que se escreve; mas certas figuras públicas que já vêm de longe fazendo desta máxima nenhum uso e aplicação tornaram-se recordistas da verborreia, com absoluto e descarado desprezo pelas mensagens, recomendações e determinações escritas. Mas, se foram os namorados que, ao longo dos tempos, mais caraterizaram a arte saudável e criativa de comunicar através da escrita o ardor dos seus corações inflamados e de luas de mal plenas, são igualmente eles, nos tempos presentes, os primeiros a abandonar a pena no tinteiro e optarem por enviar recadinhos, convites e promessas de amor eterno através das redes sociais; ou, tão-só, os levar à mão, pois cada vez menos o amor se alimenta ou ferve em panelões de paixão assolapada que somente na carta encontra a verdadeira expressão e dimensão. Por isso, já não há cupidos verdadeiros ou zés camarinhas que se deem à pieguice de enviar cartas molhadas de lágrimas ou acompanhadas de pétalas doiradas, tufos de cabelos ou cinzas de um amor amortalhado; porque isto, no mínimo, num tempo em que o amor verdadeiro, fiel e eterno, virou produto descartável e virtual, será o cúmulo da jarretice e do pinga-amor, e, até, nada espanta que, no dicionário de boas maneiras e práticas sociais, certos grupos políticos considerem a expressão do amor entre um homem e uma mulher uma atitude reacionária e fascista, já que nisto de géneros anda tudo invertido e baralhado. Todavia, continuo a pensar e a acreditar que a perda do hábito de escrever cartas de amor nos deixa literalmente pobres e bacocos; basta lembrarmo-nos do imenso e rico espólio epistolar que nos foi legado pelos mais festejados vultos da nossa história artística e literária; e que, ainda hoje faz as delícias sentimentais e oníricas de quem o consulta e revive e suspirar muitos corações de donzelas apaixonada. E já que, em termos de União Europeia, isto de cultivar batatas, nabos e rabanetes à portuguesa é coisa que não dá para mandar cantar nem um cego, ao menos cultivemos a arte de escrever cartas, postais ou simples bilhetes de amor que, nisto, talvez sejamos os únicos neste clube de ricos, mas falhados; e como pouco ou nada que valha temos para lhes vender, pode ser que esta seja a nossa galinha dos ovos de oiro. Escrevam, pois, cartas de amor e exportem-nas. Então, até de hoje a oito.
Autor: Dinis Salgado
DM

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26 setembro 2018