João Lobo (JL) mudou subitamente de campo existencial ao fim de 70 anos de vida terrena. Homem de uma cultura invulgar, senhor de um trato pessoal inexcedível, dono de uma grandeza de espírito inigualável, deixa, ex abrupto, um vasto campo de desempenhos profissionais, artísticos e sociais, que se estenderam pelas causas forense, política, solidária, docente e literária. O selo da sua rica, multifacetada e luminosa personalidade ficará doravante a marcar a memória de todos quantos lhe tomaram a prodigiosa unção da sua retidão, do seu altruísmo, da sua proficiência, do seu despojamento.
Apesar dos patamares de excelência a que se elevou no exercício de cargos como os de deputado da Assembleia da República, presidente das assembleias da CIM, da Autores de Braga, da Santa Casa da Misericórdia, da Municipal de Vila Verde, e professor universitário, não quebrou a relação umbilical que sempre manteve com o seu locus amoenus, fisicamente representado pela aldeia de Mós, sítio onde consumou a communio com o universo plural e com o absoluto que o habita. Essa maternidade ecológica, matricial e edénica foi a pedra de toque do seu prodigioso edifício literário, cuja originalidade, não raras vezes, apanhou desprevenidos alguns espíritos mais distraídos.
Este homem incomum partiu para o Além, deixando por herança a totalidade dos seus dons benignos e proficientes, quer ao seu extremoso clã, quer à polis imensa dos seus inesgotáveis afetos. Inquebrantável na defesa dos valores matriciais da civilização, infatigável na proclamação da justiça que estrutura o Estado de Direito, enérgico militante do humanismo cristão – pela aceitação em si do mistério das forças divinas, das quais o arcanjo São Miguel era um dos seus mais encendrados paradigmas –, JL esbanjou a rodos uma munificência rara em tempos de destemperados egoísmos e de ferozes orgulhos. Como Cícero exclamemos: O tempora! O mores!
Para não me ficar, neste in memoriam, por uma retórica mais ou menos repassada de saudade, quero celebrar, ainda que brevemente, a obra deste príncipe do povo, que também foi um grande arauto da natureza-mãe, ou não tivesse sido parido por Minerva, no secreto gineceu do monte Aventino. A primeira de todas as suas obras foi A Praga (1985), fábula moral centrada no conflito declarado entre a sociedade dos homens e a sociedade dos bichos, pois se aqueles destroem a casa comum onde habita a vida, estes descem às “catacumbas” da clandestinidade e unem esforços para salvaguardarem a integridade dos seus habitats naturais.
De resto, a simbiótica estabelecida entre o que é livre e selvagem e o que é cultural e factício continua a ser o pano de fundo dos dois livros seguintes, O Paredão dos Lacraus (1986) e A Fonte do Ídolo (1987). No primeiro dos títulos, o autor inicia um discurso decalcado da novela sentimental Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, do qual se cita: «Era eu pimpolho esgalgado, pouco mais que calça-púcaros, quando de minha casa me mandaram para a escola esmerilhar o entendimento.» Neste retorno à infância, JL imerge na geografia natural e humana da serra do Oural, da qual hauriu um telurismo existencial de pendor panteísta que lhe determinou as suas opções filosóficas e o ajudou a ter uma visão bucólica e holística da cultura, bem expressa, aliás, em A Fonte do Ídolo, nome do santuário pré-romano de Braga, pequena monografia onde fez mais uma profissão de fé nos valores da civilização ocidental.
Já em Sol no Eirado (1991), bichos e homens são sujeitos de verdadeiros autos literários de infames ocorrências e de negócios mal fechados que puxam fins trágicos, enquanto em A Aventura de Tomé Reconquilha e seu Cão Tirone salta à vista o realismo fantástico de animais dotados de complexas psicologias, que parecem aldeagantes sem lei a divagar por brenhas e montes carregados de arvoredo e assombração.
Passando a diarística de Olhar Suspenso e a recolha idiomática e lexicológica do Pequeno Dicionário da Infância, JL regressa em O Outro Lado da Luz (2004), aos contos eivados de sentidos sibilinos, que imergem o leitor num mundo obscuro, nebuloso, quase proto-consciente, onde, rompidas as nuvens da ignorância, faz jorrar a luz do entendimento sobre a mente do homem assustado com a sustentabilidade do planeta que habita. Porém, depressa regressa ao riquíssimo húmus da mitologia do Minho no seu livro de crónicas Viagens à Terra do Silêncio (2007), para esburgar os primórdios da civilização nas pedras de antigos castros e fazer uma demorada observação dos bichos nas suas curiosas tranquibérnias e dos homens nos seus cómicos brequefestes, até ao momento de anunciar «tempos em que os vindouros / saberão talhar os caixões com a sabedoria dos antigos».
E se em Nove Passos no Infinito (2009) descreve a queda dos mundos, expressa em trevas, fogo, sombras, plagas calcinadas, seres fantasmagóricos, demónios destruidores do direito, da justiça e dos princípios ordenadores do espaço público, e mergulha a ordem primordial num novo turbilhão incoativo e anárquico; já em Os Senhores do Tempo, animais como a abelha, o mocho ou a águia, que por antonomásia são símbolos do labor, da sabedoria e da tenacidade, servem-lhe para conferir o estado dissoluto dos institutos e da ética em sede de polis moderna. Mas ouçamos o diktat da águia: «Entre nós acreditamos que o poder corrompe, e que o brilho do fausto cega. Também damos fé àqueles que dizem que não se pode ser bom governante se quem governa estiver sempre a observar as coisas do alto, do lado de cima! É preciso ver as coisas de baixo.»
Em Diário da Vida do Mocho, uma espécie de adenda amplificada dos sentidos heurísticos de Os Senhores do Tempo, JL retoma uma longa e acutilante reflexão filosófica e política sobre a sociedade contemporânea, vazada em formas alegóricas e metagógicas que representam aspetos da crise económica mundial, de cuja palra eufemística se ocupa Miquelino, um sapo, que para além de ser voador também é caloteiro: «Acumulei dez créditos que não consegui pagar (nestes tempos, entre nós não se acumulam dívidas, mas créditos!) e agora que os malditos créditos se meteram dentro de mim, transformaram-se numa bolha e fizeram-me subir cá para cima, como um balão.»
JL escreveu ainda o Voo do Noitibó (2012), com o propósito de continuar a dessedentar-se nas fontes da sabedoria, da justiça e da beleza; A Caminho do Coliseu Quadrado (2015), para regressar às origens primordiais e proficientes do ubérrimo pensamento ocidental; A Culpa (2017), cujo sentido plurívoco (porque moral, filosófico, jurídico, político…) remete para a contradição insanável entre o desenvolvimento científico-técnico e o respeito pela lei natural; Togas, Becas e outras histórias singulares (2021), onde mais uma vez cogita sobre as origens, fundamentos e missão da justiça; e, finalmente, O Livro de Elisa (2021) uma dedicatória em prosa poética dedicada à sua neta mais velha, justamente intitulada Elisa.
JL deixa muita obra inédita e um vazio imenso no espaço público. O povo, porém, não deixará morrer o seu príncipe, nem a natureza-mãe o seu arauto. Dele ninguém dirá que veio mal ao mundo.
Autor: Fernando Pinheiro
IN MEMORIAM DE JOÃO LOBO – PRÍNCIPE DO POVO, ARAUTO DA NATUREZA-MÃE
DM
19 dezembro 2021