2 – Dum ponto de vista pessoal, o que me ocorre dizer sobre Soares?). Bem diferente de lhe traçar uma biografia resumida, o que me proponho fazer neste trabalho é coligir algumas memórias pessoais pontuais acerca da impressão que este político (com longa carreira na Democracia reinstalada em 1974), me causou a mim, testemunha que tenho sido durante este tempo todo.
3 – A chegada de Soares e de Cunhal, em Abril de 74). É claro que em 74 eu era muito novo. Mas recordo-me que, desde o início dessa década passou a ser moda (copiando os Beatles) os jovens andarem com o cabelo mais comprido. E desde 72-73, com suíças, bigodes, e até peras ou barbas. Alguns dos militares de Abril, sobretudo os mais novos, também assim trajavam (p. ex. Vasco Lourenço, Vítor Alves, Vítor Crespo, Granadeiro, Costa Brás, Sanches Osório, Salgueiro Maia, Eanes, Durão Clemente, Valentim Loureiro, o próprio Spínola, com as suas conspícuas suíças grisalhas.
Idem, nas estrelas ascendentes da classe política e mediática: Samora Machel, Manuel Alegre, Pacheco Pereira, J. Miguel Júdice, Marcelo Rebelo de Sousa, Lucas Pires, Lopes Cardoso, Acácio Barreiros, José Vitorino, Arnaldo de Matos, Joaquim Letria, António Borga, J. Furtado, Adelino Gomes, Bessa Tavares, Manuel Freire, L. Cília, J. P. Vasconcelos... O cabelo cortado curto, o rosto bem barbeado, passou a ser de repente, símbolo do anterior Regime. E até os mais velhos exibiam uma certa "liberdade capilar". De repente, chega do exílio de Paris o já aclamado líder socialista Mário Soares, o rosto bochechudo e bem barbeado, as sobrancelhas algo ralas; o cabelo bem cortado, sem franjas ou melenas (e penteado para trás, como alguns líderes comunistas do passado!).
O seu discursar era firme e bem estribado; mas a sua voz era fininha, algo efeminada, quase em falsete, com sotaque lisboeta cultivado e bem marcado. Tudo contrastando com o típico homem de esquerda da época. O próprio Cunhal, mais velho, exibia o mesmo penteado virado para trás, mas usava umas espessas sobrancelhas negras (como Brejnev); as quais, substituindo o bigode, encobriam um olhar de alguma reprimida ferocidade.
4 – A aura de um quase desconhecido). Em Abril de 74, a grande maioria dos portugueses nunca ouvira falar de Mário Soares, um advogado de Lisboa com origens ribatejanas. Contudo, ele tinha estado detido 14 vezes; era defensor de presos políticos; estivera exilado em Paris e antes, com residência fixa em S. Tomé; e co-fundara o PS, em 73, perto de Bona. O seu nome soava bem e prenunciava vitória. Era curto e "Mário" não parecia lá muito fidalgo. "Soares" lembrava nome de comerciante. E o seu partido continha quase tudo aquilo que muitos portugueses das classes média e baixa ambicionam: liberdade e promoção social e financeira à custa dos mais ricos. Logo lhe vaticinei um futuro auspicioso, ainda que demagógico.
5 – A praia do Vau). Quando eu era criança, ia muito à praia em Setúbal (Figueirinha); e à Rocha, em Portimão. Naquele tempo, o interior do Algarve cheirava, como hoje, a alfarroba e ainda estava cheio de burros e de (não tantas) carroças. E a "falta de liberdade" do Marcelismo era tal, que se podia estacionar uma roulote (como a nossa), sem pagar, longos dias, p. ex., na praia do Vau, onde o dr. Soares já tinha a sua bela vivenda à beira-mar.
No Vau, ainda me lembro, havia um pitoresco jovem deficiente mental (inofensivo), o Màrinho, que quando falava imitava sempre o som de uma traineira. O meu tio-avô Arnaldo (o tal médico feirense que anos depois haveria de almoçar duas vezes com Soares), simpatizava com o Màrinho e falava bastante com ele. O Vau era praia de grandes calores. Foi lá que, à revelia dos tempos, eu comecei a ler entusiasmado o livro de H. M. Stanley, que relatava a sua travessia de África em 1874-77. Ali no Vau, a 2 passos da terra do grande Remexido (fuzilado em 1838). E não longe da do meu dilecto Olhanense. E da terra da Dulcineia Gil, que eu namoraria em Lisboa, anos depois.
6 – As presidenciais de 2006). Soares pecaria com a Descolonização. Pecaria com Maastricht, em 92. E em 2004 despedia-se da política. Porém, em 2006, ao ver o seu rival M. Alegre candidatar-se a PR, decidiu "atravessar-se" e ir ele próprio. De início, abominei o gesto. Contudo, o contraste da sua campanha, imbuída de civismo e liberdade (e contrastante com o calculismo de Alegre e de Cavaco) seduziu o meu voto. Afinal, como eu, Soares também condenara a invasão do Iraque em 2003...
Autor: Eduardo Tomás Alves