Colega nosso de um lugarejo entalado nas fragas da serra, resolveu ir a Lisboa, cidade que já não via há muitos anos. Homem simples, de hábitos provincianos, aperaltou-se para não “destoar” na capital do “império” e não ter parecenças com um farroupilha, melhor dizendo à má-língua, como um labrego ou campónio de um “Zé Ninguém”. Aparou o cabelo, escanhoou a barba, retrocedeu a bigodaça; a velha serviçal – pois era um solteirão assumido, desgostoso com uns amores antigos que tivera com uma cachopa que dera em meretriz – passou-lhe a ferro o fato azul escuro brilhado de desgaste, que só usava no dia da procissão na romaria do Santo padroeiro daquelas bandas, escovou-lhe o chapéu de felpo que lhe aconchegava a careca onde lhe restavam uma meia dúzia de resistentes cabelos grisalhos; trocou as botas de coiro cardadas por uns sapatos de camurça que lhe haviam sido oferecidos, pelo Natal, por um familiar de um utente a quem pressupostamente curara uma filha, também esta, solteirona diagnosticada de “mal de amores”; preparou a mala e tirou o bilhete de camioneta mais económico de ida e volta e pôs-se a caminho.
Após 6 horas estafadas, imóvel num assento quase ocupado pelo vizinho do lado, chegou à capital, estarreceu de pasmo com o bulício da cidade, com o tamanho e altura dos arranha-céus, com as lâmpadas LED na via pública, com os encontrões agitados de tanta gente que povoava nas ruas, a intensidade do fluxo automóvel e viradinho dos transportes públicos que na ótica do nosso interlocutor, pareciam autênticas latas de sardinhas, com o pregão alfacinha dos ardinas a anunciar a crise em Alvalade e o sucesso do encontro de Trump e Kim, a quantidade de vendedores ambulantes impingindo ao cliente a compra de “material certificado”, o vestir despreocupado dos jovens à larga da imaginação, as mulheres fardadas de polícia, coisa que nunca tinha visto ao vivo, os farrapos e remendos dos pobretanas com o acordeão ao som do ouvido e o cãozinho com o cestinho das moedas na boca, as “mulheres da má vida” às esquinas com mensagens de atração ao cliente, salamaleques dos cafés chiques, do cavalo de D. José, etc., nada que se compare com os hábitos ancestrais vividos na sua aldeia serrana, preenchida nas horas de sobra, o amanho de dois palmos de terra, o cultivo de meia dúzia de cepas de boa pinga e a criação de uma vintena de galináceos que lhe regalavam o paladar e lhe matavam o “ougado” de um arroz dominical.
Ao deambular pelas deslumbrantes e convidativas ruas de Lisboa, deparou com uma tabuleta vistosa à distância de um antigo condiscípulo que já não via desde os tempos que frequentou a Universidade do Minho.
Entusiasmado, subiu as escadas, “louco” de contente e perguntou à funcionária de vários consultórios daquele piso.
– O senhor doutor está?
A resposta não tardou: – O senhor doutor está no Alto de S. João!
Naturalmente, chocado com a notícia, ficou triste e deprimido. Tinha perdido um amigo, um estimado colega, um companheiro especialista em farras e por acréscimo, um grande fadista das serenatas universitárias, um empreendedor quando precisava de uns trocos e disponível para ajudar à mesa.
Contudo, e por capricho do destino, dias depois, encontrou-o ao virar de uma esquina e ficou pálido de susto. Podia lá ser…? Alma do outro mundo, brincadeira de satanás, artes mágicas, alucinações…? Abrenúncio! Figas! Amedrontado, hesitado ou baralhado, sei lá como, dirigiu-se-lhe. Seria o Colega? Era de facto o Colega, que por sinal tinha sido nomeado vereador da Câmara Municipal de Lisboa e tinha a seu cargo o pelouro dos cemitérios, razão porque na tal tarde macabra quando visita o seu consultório, ele estava no Alto de S. João.
De volta à sua terra, rumo aos penhascos que circundavam a aldeia, com saudades do cultivo da terra, das cepas virgens ou da criação dos galináceos, o primeiro desabafo que interiorizou à moça nas lides caseira. Um desabafo requintado: De Lisboa, chega um postal ilustrado, preferindo a sombra da figueira, os ventos frescos e purificados e a corrente do riacho onde se pode beber água saudável e de paladar agradável, uma boa mesa abastada de produtos alimentares biológicos e uma pinga à maneira, “coisa” que durante a sua aventura arrependida em terras de fineza, deixava já amargas saudades de privação.
Autor: Albino Gonçalves
Histórias da vida: o Alto de S. João (2)
DM
18 junho 2018