Em plena cavaqueira com um ex-colega das andanças académicas, hoje um grande mestre da medicina, comentávamos as nossas brincadeiras do secundário ou as peripécias universitárias, que motivaram sessões de “porrada”, ora de cinto (e sentia-se bem…!), ora à sapatada quando a coisa dava para o torto ou de difícil convergência entre as partes!
Os tempos passaram, o meu amigo “curandeiro”, quer fisicamente ou virtualmente nas redes sociais, trocava com um sentimento de emoção e orgulho, algumas histórias alusivas sobre a conta a crédito, melhor dizendo, o fiado para quem vivia com dificuldades para cobrir atempadamente as despesas contraídas fora de casa.
Recorda-me ele, que nos seus tempos do internato complementar de psiquiatria lá para as bandas de Coimbra, teve um professor de estatura baixa quase ao estilo de anão, vermelhusco, atarracado, obeso, próximo do formato cilíndrico, ou seja, “espaçoso”, termo usado na linguagem do Garcia Romero, prestigiado vendedor cigano de roupa de “marca”, quando pretende vestir alguém com o tamanho XXXL, vestido requintadamente com um fato e colete comprado na loja de roupa usada, e que, normalmente, não dispensava as suas habituais luvas castanhas de pelica e chapéu na mão esquerda. Era um senhor de costumas sagrados e inalteráveis!
Tinha as suas excentricidades, que o transformavam numa pessoa de quem se contava uma ror de histórias, a maior parte delas verídicas e quase todas com rara graça e fino humor.
Recordo-me, por exemplo, de certa manhã na Alta Coimbrã, encontrando ele uma moça estudante de Farmácia, dirigindo-se a ela sem mais nem menos, inesperadamente, à laia de inoportuno galante, nos seguintes termos:
– “O seu namorado fez-me ontem um excelente exame!”. A cachopa estarreceu… E sem mais palavras, com o ar de distraído que lhe era peculiar, lá se foi rua fora com o seu visual têxtil (fato e colete), contemplando o saturado Mondego e vergando a sua mente à concentração dos seus pensamentos. Santo homem afinal. (Claro que lhe fiquei muito grato pelo exagero paternal e gentilíssimo da académica “notícia”, não falando do espanto, porque nestas coisas, era homem de “barba rija” e nada complacente com a iliteracia dos seus formandos…).
Segundo constava no burgo coimbrão, quer na esplanada do café ou nas entranhas das repúblicas, este fantástico e magnífico mestre das ciências médicas tinha o louvável e admirável culto da boa mesa, não obstante recomendar aos seus doentes e amigos mais chegados, prudência com a ingestão da quantidade de alimentos, conselhos que lhe se abstraíam, pelo que não seria admissível que esquecesse meticulosamente as horas das refeições. Antes pelo contrário.
Pois, certo dia, estando a pastelaria mais chique de Coimbra – a Central – recheada de damas vistosas da alta-roda social, encenadas de pernas nuas e descuidadas a sabor da provocação, o Professor, incomodado com a obrigatoriedade de periodicamente instalar os olhos naquelas peças boas para as lições de anatomia, tinha o uso de dar nas vistas, exibindo (à mistura com os seus botões de punho herdados de antepassado ricaço) a intelectualidade dos sábios distraídos que vagueiam por outros firmamentos, dirigiu-se ao proprietário da referida pastelaria nos seguintes termos:
- “Oh Petrónio, já almocei?”
A resposta não tardou:
- “Já sim, senhor Professor!”
O mestre de Psiquiatria (que devia estar com um apetite devorador e de estômago ofegante…) entrou de imediato na porta mesmo ao lado – no café “Nicola”, chamou o dono e ordenou-lhe:
- Oh abelha manda-me servir um bife, ovo estrelado com batatas fritas, arroz e salada de alface. Nada de demoras!”
E lá se sentou à mesa regalado, desta vez sem os “incómodos” das perninhas das damas vistosas, significando isto que o seu cérebro estava liberto das pressupostas imaginações anatómicas, não obstante saber que estava em jejum.
Quanto ao chico-esperto “Petrónio” da “Central”, esse ficou radiante ao meter na algibeira o dinheiro da refeição não servida, pois era sabido que o Mestre tinha uma conta de crédito, pagando sempre no fim do mês ou quando os bolsos estivessem mais abastados para amortizar as despesas de consumo.
Autor: Albino Gonçalves
Histórias da vida: a conta a crédito (1)
DM
4 junho 2018