Contra as que ousam denegrir e até apagar da Hist6ria os 13 anos de Guerra em Africa e para que as novas gerações dela retenham a justa e honrosa verdade, aqui deixo o meu testemunho de combatente efetivo no Norte de Angola, onde ela, ha 60 anos eclodiu; e, assim, lançar o repto a todos quantos, como eu, com sangue, suor e lágrimas, a fizeram para que saiam em defesa da valentia, honra e glória com que responderam presente ao chamamento da Pátria e, sobretudo, em homenagem aos milhares de mortos e mutilados dela resultantes.
Desembarcamos em Luanda numa manhã de sol e de preguiça, acanhados na nossa nova couraça de homens frios e rudes, instruídos e mecanizados na difícil missão de matar sem morrer, de esmagar , se preciso, com um torpedo uma formiga; e mentalizados na asserção de que, em teatros de guerra, o azar não escolhe rostos nem idades, mas os menos voluntariosos, resilientes e ágeis.
Sabíamos seguramente que, como combatentes, nos unia um sentimento ímpar de solidariedade e fraternidade na homogeneidade de funções e ideais; que a nossa partida para o Norte – para a tal zona quente como se dizia – aconteceria na madrugada da próxima sexta-feira; que a vida agora para nós, começada sem poesia nem epicurismo, limitar-se-ia a este pequeno e restrito círculo de vivências menos agradáveis do que desagradáveis deste nosso segundo lar; que a nossa tristeza seria a alegria de outros tantos que nós vínhamos render e com o dever cumprido ansiavam o regresso à Pátria; que a arma (uma automática G3) seria a nossa única, mais fiel e confidente companheira com quem repartiríamos a solidão das nossas noites de vigília ou insónia e o calor dos nossos braços durante todo o dia; que o tempo, o real valor do tempo não se mediria na curva dos calendários, mas na certeza diária de estarmos vivos; que as horas boas e más se sucederiam como em qualquer outra forma de vida; e, sobretudo, que devíamos persistir, teimar contra a morte e, caso acontecesse, aceita-la com a dignidade e simplicidade das arvores que sempre morrem de pé.
Chegamos à zona quente – que em linguagem militar significava zona de guerrilha intensa – ao princípio da noite, após longas e acidentadas horas de viagem através de picadas de lamaçal e enxurradas em camiões de carga civis, onde fomos recebidos com palmas, hurras, dísticos, música e cerveja, muita cerveja, num autêntico arraial; era para eles a alegria da rendição ansiada e o fim de dois anos de luta, medos e angústias.
A milhares de quilómetros da Pátria, mesmo assim encontraram-se conhecidos, conterrâneos, vizinhos de província; e as perguntas sucediam-se: como está tudo par lá? Como estamos de mulheres? E isto par cá? A zona que tal? Assim e assado, baixas, emboscadas frequentes, ataques noturnos ao aquartelamento. Olho vivo! Ainda há dias numa emboscada, eram uns vinte turras, apanhamos duas armas e fizemos dais mortos.
Desta breve troca de impressões com os velhinhos, nós, os maçaricos, ficámos logo com algumas noções menos lisonjeiras sobre o cenário de guerra que nos esperava, sobretudo com um inimigo violento e agressivo; e declaradamente disposto a não fugir ao contacto, a lutar, a fazer-nos cara a vida.
Passados os ordinários cinco dias de sobreposição – conhecimento da zona operacional, trespasse de materiais e troca de experiências, conselhos militares e aclimatação com a tropa que rendemos – ficamos sozinhos e senhores absolutos de um amplo e novo horizonte de matas, morros, picadas, animais selvagens, trilhos , grutas, palmeiras, mangueiras e, obviamente, zonas de maiores riscos que se estendiam, a perder de vista, por muitas dezenas de quilómetros sob a nossa vigilância e defesa.
As instalações onde viveríamos por dois longos anos eram pertença de gente obreira e pacífica que teve de a abandonar, bem como as suas terras e bens, quando a horda terrorista (UPA – União dos Povos de Angola) assolou o Norte matando, mutilando esventrando e esquartejando homens, muheres e crianças, fossem negros ou brancos, dando, assim, início à guerra.
Muito perto do Congo, a dois dias de viagem pelo trilho internacional de Matadi, esta população preta aí se exilou e vivia, sendo, futuramente, reagrupada, dominada e submetida pelos denominados movimentos de libertação de Angola (UPA, MPLA, FNLA e UNITA); e, então, o que nos esperava por detrás de tudo isto, desta tão serena como exuberante Natureza? Uma guerra de guerrilha que durou 13 esforçados e dolorosos anos para quern a fez e para o país que a sustentou economicamente e viveu emocionalmente .
Vivemos, resistimos, lutamos , sofremos, cumprimos; nem todos regressaram, por que a nossa face, a face visível da guerra era matar ou morrer – honra, louvor e glória à sua memória. A outra, a face oculta da guerra que descobrimos com tempo, labor e luta era o inimigo com os seus movimentos dissimulados, emboscadas armadilhas, surpresas e agressividade, a sua vida invisível e traiçoeira nas matas e capinzais.
Entao, até de hoje a oito.
Autor: Dinis Salgado