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Golpe de asa

É uma sensibilidade que lhes invejo, aquela que lhes dizia o quando e o como, num tempo em que não havia tabelas pluviométricas, nem séries de temperaturas ou de geadas. Bem sei que não há equação nem pedra de roseta que nos ajudem a dar sentido aos saberes empíricos, mas isto provoca, naqueles que estudam a ciência da agricultura, uma pontinha de ciúme.

Afinal, compreendo que esta minha curiosidade é apenas vício de raciocínio e lá acabo por me contentar com uma explicação mais prosaica. Basta-nos juntar um pouco da ciência das escolas com o muito de sagrado e de poético que há em esventrar a terra e esconder ali a semente com um minúsculo embrião de vida. Virá um esplendor de verde, primeiro, depois uma flor que algum vento ou abelha tenha a virtude de fecundar. Antes da colheita, sempre a paciência de esperar por um fruto maduro e perfeito.

Passo por um tractor que rompe os campos e fico-me por ali, a observar. A terra, cortada pelas relhas dos arados, surge escura e fofa, vinda lá do aconchego onde passou o Inverno. Logo, logo, o golpe da aiveca lança-a numa capicua perfeita. Assim, vista de longe, aquela charrua dá-me uns ares de esqueleto cravejado com asas de gigante, uma ave-monstro de ferro que se espatifou sob o próprio peso e que, agora, passa os seus dias a ser arrastada pelo tractor implacável.

Regresso a casa tranquila, em paz com a ciência e com as musas. Pelo caminho ainda revisito a memória de velhos arados de madeira, sulcando leiras pobres das encostas, numa tríade harmónica de animal, alfaia e homem, onde havia tanta poesia como naqueles versos de Miguel Torga, dedicados à Primavera:

Toca-se numa pedra, e ela treme!
Murmura-se uma prece, e a boca grita!
A rabiça do arado é como um leme
Sobre a terra que ondula e ressuscita!


Autor: Fernanda Lobo Gonçalves
DM

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5 março 2017