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Fruta podre

No local onde me abasteço de fruta, num dos cantos escondido pelas paletes, andava uma mulher à cata de alguma maçã, banana ou gaipa de uvas das que tinham sido tiradas do olhar da clientela. Escondia o rosto com um lenço. A sua roupa, embora puída pelo tempo ou recosida nas golas de um casacão, demonstravam um passado de mais desafogo financeiro; agora escolhia com vergonha a fruta apodrecida. Reparou que eu reparara e, num assomo, tal arranco de dignidade sobrante, fixou os olhos nos meus e eu pude ler neles uma tristeza tão profunda e uma desilusão tão grande que me deixaram com sentimentos de culpa por ter o meu saco cheio de fruta boa. Apeteceu-me trocar de sacos, mas tive receio de a envergonhar. Então aproximei-me como quem procura alguma coisa que sabia não existir, fui reticente a com medo de encontrar o que procurava; depositei no saco da senhora uma nota e afastei-me depressa com medo de a ter envergonhado e com receio que a mão esquerda visse o que a direita tinha feito. Dentro da loja, ela veio como sombra que avança; a senhora tropeçava a espaços e sem que ninguém ouvisse disse-me: já dá para pagar a luz, e desviou-se. Isto é que é miséria envergonhada, isto é que é descer na escala social, isto é que é o retrato vivo de quem já foi e agora não é. Mas no porte de cabeça alta que sustentava, e nas roupas que mostravam outro passado, a senhora da fruta podre, aquela mulher, ainda tinha a dignidade de uma senhora. Por que razão eu acabo por encontrar a miséria em pessoas com quem me cruzo? Há tempos foi o pobre do sem-abrigo da avenida, agora é esta senhora que busca no lixo a fruta para o marido desempregado e ela com rendimento mínimo de inserção social, não podem comprar. Esta miséria talvez não seja só eu que a noto. Talvez ela esteja aos olhos de todos, só que tanta miséria ao ser vista tantas vezes, já embotou a sensibilidade e fez da pobreza um caso normal. Esta mulher tem vergonha de ser pobre e tem razão para a ter. Enquanto tiver vergonha é simplesmente pobre porque quando a perder é miserável. O fundo da escala social está pejada desta gente. Numa sociedade que compra mais do que gasta, que desperdiça alimentos às toneladas, que tem mesas lautas que o estômago não aguenta, esta dicotomia, deixa, tem que deixar, um caminho para a reflexão. Esta senhora pobre nem sequer explorava a caridade cristã porque não estava à porta de uma igreja, não tinha um trapo ensanguentado numa perna; estava ali mostrando a sua pobreza porque tinha em casa alguém que necessitava de comer. Não pedia, não rogava, não era uma pedinte, também não era uma miserável, era uma pobre. Era uma pobreza naquela dimensão que enobrece pelo sofrimento da dignidade. Ser digno custa muito. Talvez ela vá buscar, de lenço puxado para o rosto, um cabaz de Natal tão recheado de fartura quanto magro será o sustento do seu dia-a-dia. Isto não é um postal de Natal, é um retrato de muitas vezes.


Autor: Paulo Fafe
DM

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13 dezembro 2021