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Formação superior por um canudo

Todos os anos, mal despontavam os primeiros dias da Primavera, florescia um castanheiro-das-flores-vermelhas, junto ao túmulo dos guardas suíços mortos a 10 de agosto de 1792, nos jardins des Tuileries, em Paris. Todos os anos, a imprensa francesa relatava a ocorrência: as flores do castanheiro (marronier) tinham, uma vez mais, desabrochado. Desde então, o termo “marronier” – em inglês, usa-se evergreen, em referência às árvores de folhas persistentes – passou a designar uma peça jornalística dedicada a um evento recorrente e previsível. Todos os anos, a nossa comunicação social noticia a chegada dos emigrantes, as estatísticas da época balnear, as tradições e festividades de Natal e da passagem de ano, o Dia dos Namorados, a mudança da hora, o Dia das Mentiras, os saldos, os festivais de Verão, os rankings das escolas ou o regresso às aulas, entre muitos outros temas com que se entretém invariavelmente a opinião pública. O início de mais um ano universitário faz parte desses rituais que, em termos editoriais, permitem cimentar a relação com os leitores, auditores ou telespectadores. Por estes dias, é esmiuçado o número de vagas, a lista dos cursos com as médias de entrada mais altas, a variação do número de candidatos – este ano, menos 3146 do que em 2017/18 –, os preços dos alojamentos e outras despesas (propinas, refeições, viagens, passes e fotocópias), a lista dos cursos (quase) sem pretendentes, o perfil dos dois ou três dos alunos com as melhores médias do país, etc. Acrescem ainda, noutras alturas, as referências aos resultados dos exames de acesso, ao ranking dos melhores cursos e universidades, às respectivas taxas de empregabilidade, mas também às incontornáveis festas académicas. A posse de um diploma universitário continua a ser uma inegável mais-valia para o acesso ao mercado de trabalho e a remunerações um pouco mais elevadas, mas nem sempre garante uma formação integral e humana. As componentes pedagógica e científica constituem o cerne daquilo que se pede a um estabelecimento de ensino superior, mas não se preparam cidadãos verdadeiramente livres e responsáveis sem um projeto de educação para os valores. Infelizmente, não parece que essa seja uma das nossas preocupações centrais. Embora tenham sido tomadas algumas medidas, basta olhar para a opacidade com que, de maneira geral, se continua a lidar com a questão da fraude – o plágio constitui já uma disciplina olímpica – ou então se ignoram as normas e comportamentos institucionalizados pelas praxes ou o consumo de álcool nas festas académicas. Muitas vezes me deparei, em plena via pública, com caloiros em posição de total vassalagem aos pés dos “seus” doutores, obedecendo a ordens obtusas ou repetindo em alta voz ladainhas grosseiras e humilhantes. Quando muito, impede-se que tais práticas sejam consumadas nos recintos universitários, mas raramente se procuram soluções alternativas. Não se trata de instituir uma sociedade de controlo e vigilância, mas cabe também à Universidade educar para a responsabilização. Admiramo-nos com os comportamentos menos éticos e cada vez mais recorrentes por parte das chamadas elites e ficamos surpreendidos com o desinteresse da população em geral por questões de interesse público. Não há que estranhar. Então não se “ensina” na Universidade que quem manda são os “doutores” e que para me integrar no corpo social mais vale não fazer ondas e seguir à letra tudo o que me dizem, mesmo que a prescrição seja estapafúrdia. Em vez de se cingir ao “marronier” do regresso às aulas, bem poderia a comunicação social debruçar-se sobre a questão…
Autor: Manuel Antunes Cunha
DM

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15 setembro 2018