Não, não seria de um romance cor-de-rosa; talvez de uma publicação médica que, naquela precisa página, explicava esse sobressalto ocasional a que os médicos dão o nome de extra-sístoles, mas que eu sempre considerei como o tropeçar do coração.
Uma vintena de passos e ali estavam eles, amontoados junto ao caixote do lixo, livros velhos, deformados, frágeis como as pessoas velhas, a cheirar a naftalina e a pó. Adivinhei-lhes o lugar de onde foram expulsos, no vaivém apressado de uma senhora vestida de bata de limpeza, que me explicou estar a desfazer-se daqueles papéis que ainda restam na casa.
A casa que viu morrer os donos e que os filhos e netos querem vender. Quase lhe falava da minha indignação com esta mania estúpida de deitar livros ao lixo, mas tive receio de não ser compreendida. Em vez disso, debrucei-me despudoradamente sobre o monte de papéis, como se fora um sem-abrigo à procura de comida. Quando me descobri sem braços para os salvar a todos, pedi um saco e trouxe-os, direitinha a casa, ansiosa como quem acaba de resgatar, do abandono, uma ninhada de gatinhos recém-nascidos.
Ando agora, com vagares de copista, a folheá-los e a limpar “a maior”. Já me passaram pelas mãos a geometria plana, o direito civil, a botânica, a construção naval, a biologia, alguns cadernos de apontamentos, duas ou três cartas privadas, embora inócuas, e o mais que já não me lembro. Nestes papéis, pude entrever a história de uma família: o médico e a professora, um filho, engenheiro, e um outro, magistrado do ministério público. Demorei-me um pouco mais num livrinho de botânica, para perceber as diferenças morfológicas, por vezes subtis, entre os codessos e as giestas, assunto que ficará para uma próxima crónica.
Porquê este meu gosto por livros? Fascina-me a estética das lombadas nas estantes bem compostas e o cheiro do papel já antigo, mas não será apenas isso. Julgo que é, também, a necessidade de guardar memórias, de armazenar provisões para a alma. Quando um dia precisarmos de reconstruir o mundo, os livros poderão dar-nos uma grande ajuda.
Autor: Fernanda Lobo Gonçalves