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Fizeram as pazes

Afinal o trabalho não é um castigo, é uma alegria porque fonte de rendimento e fonte de ocupação de tempos e espaços. Fui ao restaurante; o sr. empregado que me atendeu estava de uma amabilidade sorridente que me deixou pensativo. Tinha lá ido algumas vezes e tendo sido sempre tratado com a deferência que se exige a um freguês, mas nunca tinha visto tantos sorrisos e tantas reverências e continências como desta vez. Mas não eram lisonjas, eram satisfações. Os sorrisos as atestam, as boas vontades as documentam. Havia em todos os fregueses uma contenção de gestos e de fala que deu e emprestou a todo o espaço um ar de delicadeza “raffiné”, como dizem os franceses. O acostumado barulhar de vozes, como o marulhar do mar, cedeu lugar ao silêncio de águas quietas de um lago adormecido. Ninguém parecia estar disponível ou interessado em agitar estas águas e até as duas crianças do casal que comia silencioso, no lado oposto, pareciam adultos em dia de pêsames. Apenas o tilintar dos copos e o craque-craque das loiças, acordavam a modorra desta refeição esquisita. Era um ambiente estranho. A refeição chegou à mesa num repente. Não deu tempo para comer o pão da couvert, nem para saborear os bolinhos de bacalhau da entrada. A hora era de despachar porque lá fora começava a formar-se a fila dos resistentes a desistentes. Na sala para trinta mesas estavam dez a funcionar e as mesas vazias pareciam sentinelas fardadas vigiando os espaços legais do confinamento. Cartão para pagamento porque quanto menos contacto com dinheiro vivo, melhor. O gosto de estar na mesa, comendo devagar como quem aprecia o último bocado, deitando manteiga no pão aos nicos, deliciando-se neste vagar como quem vai às ondas, olhar em roda e ver na mesa de lá o velho amigo e com ele trocar um sorriso, perdeu-se nesta quadra. E, já sem esse tempo, pouco e pouco ,fomos transformando o dia-a-dia em passado e o passado em névoa que se esfarrapa com a dolorosa fragrância das nostalgias que magoam. Fico cogitando o porquê daquela alegria! Os sentimentos não se medem, sentem-se numa escala que não tem medida. Os positivistas, os racionalistas, os céticos, os secos por dentro, os que acreditam apenas no que veem, de duas uma: ou não observam estas coisas desta maneira, ou pior, já estão tão secos que não sentem coisa nenhuma. São inteligentes, realizadores, empreendedores, trabalhadores, tudo isto podem ser, mas homem de sentimentos não são. Quem não é capaz de chorar com os que choram, ou rir com quem ri, está manco por dentro. Mas por que razão os empregados e o empresário estavam tão sorridentes? Eles sabem que continuam as privações, sabem que não acabou a vida incerta e ainda há dentro deles a presença do sentimento de instabilidade; e isso aflora-lhes na alma, não como um sentimento enfático, mas com o sentido duma realidade e que eles traduzem por monossílabos que valem textos: pandemia, vacina, trabalho e esperança”! Ao ouvirmos essas palavras, e ao saber o que elas significam para eles, começamos por dizer que teimosia grandiosa, que riqueza de esperança aqui se expressam! Mas ao observá-las mais de perto, essa elã, revela-nos que eles foram capazes de transformar a pandemia numa coisa comum. Sabem que é grande mas a sua alma também. A coisa é agora palpável, não se esconde em sítio onde se não sabe procurar; mas as coisas comuns apenas se enchem de magia quando a varinha do génio humano lhes toca. E o génio humano diz-lhes que o trabalho já não é um castigo; é meio, fim e caminho para se tornar senhor independente e ter caráter. E, deste jeito, o homem fez as pazes com o castigo bíblico.
Autor: Paulo Fafe
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1 junho 2020