E se o panado é o rei nestas deslocações, a cerveja é a rainha, provocando frequentemente corridas céleres e sistemáticas à casa de banho que acabou por encher com tanta bexiga a precisar de alívio. E quem não caça com gato, arranja maneira e a maneira foi fazer diretamente para a linha, usando os separadores de carruagens, fechados entre duas portas, perante o olhar de dezenas de pessoas a condicionar a saída do alívio, que estas coisas dos olhares provocam constrangimentos. Uns disfarçam assobiando, outras fumando com uma mão e ajudando a fazer o serviço com a outra. À saída já nada pode evitar a constatação do que estiveram a fazer, com roupa salpicada aqui e além e sapatos que parece que andaram à chuva.
Uns deitam-se no chão, outros deitam-se em cima de outros, outros tombam em bancos sem apoios, duros como pedras onde ninguém merece sentar. Descalçam-se sapatilhas e o ar é invadido por aquele cheiro célebre que se espalha em segundos. Tenta-se dormir de qualquer maneira, ouvem-se ressonares, em vários tons, numa verdadeira música desafinada. E depois vem a bufa, o cheiro da bufa, da bufa sem que ninguém saiba de onde vem mas que nos invade. E uns protestam e outros riem-se e outros continuam a ressonar, alheios a tudo, até ao pedaço da batata frita que lhe meteram na boca, registado por telemóveis matreiros e risos abafados.
Tomam-se pastilhas para dormir, com efeitos dúbios, propala-se que só adormeceu uma perna e que o sono não vem. E aparecem as piadas sobre a perna que terá adormecido e novos risos são abafados em respeito aos que dormem. E depois lá vem mais um “oh mãe há mais comida” e um “pega lá mais um panado e cala-te que quero ver se durmo um bocado que vou daqui trabalhar direto” e fazem-se mais uns minutos de silêncio até um ressonar mais alto voltar a perturbar o ambiente ou uma bexiga cheia a precisar de alívio entre duas carruagens, provocar mais um momento cinematográfico e mais uma quantidade de risos que prontamente geram um “vejam lá se se calam para eu dormir” daqueles que alardeavam horas antes um “aqui ninguém dorme”.
Poucos dormiram, pouco se dormiu e o comboio transformou-se numa torre de Babel de odores, ao som de roncares de vários sopranos e tenores que, sob a batuta do cansaço, deram origem a uma verdadeira sinfonia nortenha.
E o comboio chegou, arrumaram-se os sacos, levantou-se a cabeça, gozou-se com o facto de termos perdido para um clube de uma freguesia com menos habitantes do que Gualtar, rimo-nos, juramos não voltar a embarcar numa aventura destas e fomos apanhados pela chuva miudinha da cidade que é conhecida por ser o penico do céu. E metemo-nos no carro ainda a pensar quem era o autor das bufas...
Autor: Ana Pereira