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“Fica connosco...”

Lc 24, 13-35 é “uma das páginas mais intensas do evangelho de Lucas, um dos encontros mais fascinantes de Cristo Ressuscitado com os seus discípulos, um dos momentos mais vivos da experiência cristã” (Gianfranco Ravasi). Léon-Dufour chama-lhe mesmo a “obra-prima narrativa” de Lucas. E de tal forma é assim que Jean Guiton afirma que, “se fosse necessário renunciar a todo o evangelho por uma cena onde ele esteja inteiramente resumido, (...) escolheria a dos discípulos de Emaús”.

Não admira, pois, que o referido texto tenha um lugar de relevo na pintura (Caravaggio e Rembrandt, entre outros), na literatura (veja-se o texto de François Mauriac, na sua Vida de Cristo, ou mesmo os poemas de Thomas S. Eliot e Jónatas Serrano), na Liturgia das Horas (hino de Vésperas da terça-feira) e até na música (“Fica connosco...” ou “Fica junto a nós...” são refrães muito musicados e cantados).

Esta composição notável pode ser lida a partir da perspetiva da catequese eucarística (a palavra e o pão), da hospitalidade (“Fica connosco...” [v. 29]), da construção da fé e da identidade crente (J. Tolentino Mendonça chama-lhe “laboratório da fé pascal”).... Leio-a aqui na ótica da pedagogia do Ressuscitado, modelo operativo para a missão da Igreja.

- A aproximação de Jesus a “dois deles” (um é Cléofas, o outro não tem nome, cabendo aí o nome de cada um de nós) que caminham para Emaús diz muito da sua preocupação e proximidade.

- As perguntas de Jesus que finge não saber (vv. 17.19) provocam nos discípulos uma narrativa (vv. 19-24) com finalidade catártica: verbalizar liberta.

- A repreensão dura de Jesus aos discípulos (vv. 25-26) e a “lição de exegese” (J.-N. Aletti) que se segue, no v. 27, têm a finalidade de corrigir, esclarecer e formar.

- A finta de Jesus que “fez menção de seguir por diante” (v. 28) sugere que o lugar do Ressuscitado é mais além, sendo também uma estratégia que “força” a hospitalidade.

Tudo isto arranca dos lábios dos discípulos um dos pedidos mais comoventes da Escritura (v. 29: “Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso”); leva-os a constatar que lhes ardia o coração, quando Ele lhes falava pelo caminho e lhes explicava as Escrituras (cfr. v. 32); faz com que reconheçam (este é, na Bíblia, o verbo da fé) o Ressuscitado na fração do pão (v. 31), apesar da invisibilidade dessa presença. De facto, o texto grego não diz que “Ele desapareceu da sua presença” (Bíblia da Difusora Bíblica), mas antes que “Ele tornou-se-lhes invisível” (Bíblia de Jerusalém e da CEP).

A Palavra das Escrituras e a “fração do pão” (“é a atitude de partilhar que sela a verdade da palavra” [A. Rego]) impeliram os discípulos, de novo, para Jerusalém, onde, à chegada, escutam a proclamação querigmática (v. 34: “Realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!”) e dão corpo e voz à narrativa (v. 35: “contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir do pão”).

Por todos os motivos referidos, estamos perante “uma história sem fim” (Sophie Reymond), a ser vivida e narrada por cada crente, sobretudo em Tempo Pascal.

*Professor na Faculdade de Teologia – Braga e Pároco de Prado (Santa Maria)


Autor: P. João Alberto Correia
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27 abril 2020