twitter

Federico Fellini, 100 anos

Foi um dos grandes criadores do século XX. Realizou filmes inesquecíveis como A estrada (1954), A doce vida (1960), 8 ½ (1963), Julieta dos espíritos (1965), Roma (1972), Amarcord (1973), Ensaio de orquestra (1979), O navio (1983) ouGinger e Fred (1986). Federico Fellini moldou o olhar contemporâneo e impregnou de tal modo o nosso imaginário que os dicionários – como o Houaiss, por exemplo – registam o adjectivo “felliniano” para classificar as imagens que, de algum modo, fazem lembrar as que ele nos ofereceu. Também o termo “paparazzo” – que o Houaiss também inclui – se deve a Federico Fellini por causa do fotógrafo indiscreto que aparece em A doce vida. Amanhã assinala-se o centenário do seu nascimento.

A dimensão religiosa está presente no trabalho do realizador italiano que morreu em 1993. Em Fellini por Fellini (Lisboa: Publicações D. Quixote, 1985), que recolhe uma longa e interessantíssima entrevista concedida a Giovanni Grazzini, então crítico de cinema do diário Corriere della Sera, quando questionado sobre qual a relação que mantém com a religião, responde com duas perguntas: “Quem é que nos guia na aventura criativa? Como é que pôde acontecer?”. A seguir declara que “só a fé em qualquer coisa ou em alguém escondido dentro de nós, alguém que se conhece pouco, que se faz vivo de vez em quando, uma parte taciturna e fechada e sábia que se pôs a trabalhar em nosso lugar pode ter favorecido a misteriosa operação”.

Para Federico Fellini, “nós ajudámos esta parte incônscia dando-lhe confiança, não a contrariando, deixando-a actuar. Este sentimento de confiança creio que possa definir-se como um sentimento religioso. A presunção, a erudição, o egoísmo, a mania de que se sabe mais, a falsa cultura, muito frequentemente bloqueiam esta confiança, obrigam-na a retirar-se, a dissolver-se, e então quase sempre acontece que os resultados sejam menos satisfatórios”.

E como estás com a Igreja Católica?”, indaga depois Giovanni Grazzini. Federico Fellini formula mais duas perguntas: “Que posso responder? Já te disse que gosto dela, e como teria podido, nascendo em Itália, escolher outra religião?” O realizador assegura que gosta “da sua coreografia, das suas representações imutáveis e hipnóticas, das preciosas encenações, dos cânticos lúgubres, do catecismo, da eleição do novo pontífice, do grandioso aparato fúnebre”. Além disso, experimenta “um sentimento de gratidão por todas as amolgadelas, obscuridades, tabus que constituíram um imenso material dialéctico, as premissas de rebeliões vivificantes, e a tentativa de nos libertarmos de tudo isto dá um sentido à vida”. Federico Fellini refere igualmente como um dos “méritos da Igreja” a protecção que oferece “do magma devorador do subconsciente”.

Federico Fellini acrescenta ainda que, “talvez por uma recordação ancestral”, há nele “uma deslumbrada atracção pela Igreja Católica, que foi a mais extraordinária criadora de artistas, a mãe severa, comitente, atenta e generosa de obras-primas exclusivas”.

Giovanni Grazzini quis saber qual a maneira de rezar do realizador. Federico Fellini indica-a: “Uma atitude semelhante à oração, ou de qualquer modo à minha maneira de rezar, parece-me podê-lo reconhecer quando, em situações particularmente complicadas, das quais não consigo sair, de repente deixo de me preocupar, renuncio, lavo daí as mãos como se o assunto dissesse respeito a outro. ‘Pensem vocês’, digo, ‘pense alguém, eu não consigo safar-me.’ E geralmente o assunto resolve-se.”

No momento em que se celebra o centenário do nascimento de Federico Fellini, é recomendável sublinhar a actualidade de uma sua observação política, tal como a recordou o ensaísta e filósofo Rob Riemen em distintas ocasiões – também numa entrevista concedida a Teresa de Sousa (Revista 2, 29 de Abril de 2012). No final da vida, o realizador terá avisado: “Eu conheci o mundo do fascismo e a sua raiz é a estupidez. Foi o lado frustrado e provinciano de nós próprios que lhe conferiu legitimação política”, razão por que Federico Fellini terá prevenido que, para garantir que ele não regresse, a primeira coisa que temos de combater é a estupidez dentro de nós próprios.


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

DM

19 janeiro 2020