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Fazer bem depois de morto

1. Propositadamente não abordo o tema à luz da Fé mas numa perspetiva meramente humana. Pretendo lembrar que, se o quiserem, mesmo depois de mortas as pessoas podem continuar a fazer o bem e a «mandar» nos bens cuja administração lhes foi confiada. 2. Em 1986 a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, (uma entidade governamental, distinta das santas casas da misericórdia espalhadas pelo país e não só), instituiu três prémios denominados «Nunes Corrêa Verdades de Faria». Destinam-se a galardoar indivíduos de qualquer nacionalidade que, em Portugal, mais tenham contribuído pelo seu esforço, trabalho ou estudos, para cada uma das seguintes áreas: cuidado e carinho dispensado aos idosos desprotegidos; progresso da medicina na sua aplicação às pessoas idosas; progresso no tratamento das doenças do coração. Fê-lo dando execução às disposições testamentárias do benemérito Henrique Mantero Belard, casado com Gertrudes Eduarda Verdades de Faria. 3. Vocacionado para o comércio e para a alta finança, Mantero Belard multiplicou o património herdado do pai, acumulando riqueza e poder. Nascido em 1903, faleceu em 26 de maio de 1974, de enfarte, tal como a esposa. Sem ter descendência, por testamento cerrado, aprovado notarialmente em 14 de agosto de 1967 e aberto em 07 de junho de 1974, legou os muitos bens à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, à Cruz Vermelha e ao Estado Português, nas proporções, respetivamente, de setenta, vinte e dez por cento. Determinou no mesmo testamento a instituição dos referidos prémios anuais. O que foi a sua vivenda do Restelo, hoje propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é a residência Faria Mantero, utilizada como lar, residência ou casa de repouso de pessoas cultas, de mérito e sem recursos, conforme expresso no clausulado do testamento. 4. Acontece, assim, o que afirmei de entrada: depois de mortas, as pessoas podem continuar a fazer o bem e a «dar ordens» relativamente ao que em vida fora seu. Dir-me-ão que, no decurso dos anos, se os bens legados já não permitirem a satisfação dos encargos, há processos legais que dispensam os herdeiros de cumprirem o testamento. Mas isso não invalida a afirmação que fiz e mantenho. Os mortos, se em vida tiverem sabido dispor dos seus bens, continuam a mandar. 5. A quem possui bens compete o encargo de os saber gerir, já em vida, de uma forma solidária e não egoísta. Depois de partirem para o outro lado da vida, podem continuar a fazê-lo, se souberem fazer um bom testamento. Para isso deverão aconselhar-se com quem, de verdade, os possa orientar, não se deixando levar por indivíduos habilidosos e interesseiros, desejosos de virem eles ou os seus a beneficiar do que outros ganharam. 6. Não tenho dados que me permitam dizer se pessoas com bens de fortuna têm sabido legar os bens a instituições que, com eles, poderão fazer obras de benemerência e de solidariedade ou instituir fundações com tal finalidade. Avultam os casos de Calouste Gulbenkian e Champalimaud, mas existem mais. Numa recente publicação sobre os Prémios Nunes Corrêa Verdades de Faria escrevia-se que «as doações, heranças e legados representam ainda hoje para as Misericórdias como que a razão de ser da sua própria existência, dado constituírem importantes meios de sobrevivência e expansão destas seculares Instituições de bem-fazer». Noutros tempos uma considerável receita das Misericórdias eram, de facto, bens que lhes legavam. Hoje... 7. Uma coisa é certa: não levamos para o outro lado os bens que possuímos, ou melhor, que foram confiados à nossa administração. Às vezes há pessoas que não fazem testamento, desperdiçando a oportunidade de continuarem a administrar e de fazer o bem. Outras vezes, na elaboração do testamento deixam-se influenciar por maus conselheiros, contribuindo para que os rios corram para o mar, isto é, deixando muito a quem já muito tem ou a quem vai malbaratar o que herdou. Estou persuadido de que, para quem possui, fazer um bom testamento é hoje um dever moral.
Autor: Silva Araújo
DM

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27 setembro 2018