A liberdade de expressão é, hoje, cada vez mais impunemente, evocada para autorizar não a manifestação de uma qualquer opinião sobre um facto, mas para forjar os próprios factos que convenham à opinião que se pretende expressar. O espaço público, em vez de ser beneficiado pelo pluralismo de pontos de vista sobre os acontecimentos, torna-se refém de factos que não ocorreram. A verdade passa a ser algo inteiramente falsificável. Contra esta manipulação, que torna a liberdade de expressão uma impostura, manifestou-se Hannah Arendt, uma das mais importantes pensadoras do século XX. Em Verdade e política (Lisboa: Relógio d’Água, 1995), texto originalmente publicado há pouco mais de cinquenta anos na revista The New Yorker, explica que a verdade de facto diz respeito a acontecimentos e circunstâncias nos quais muitos estiveram implicados. A verdade, sublinha Hannah Arendt, é estabelecida por testemunhas e assenta em testemunhos.
Para a filósofa, os factos e as opiniões são algo absolutamente distinto, ainda que não se oponham, uma vez que pertencem ao mesmo domínio: “Os factos são a matéria das opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e diferentes paixões, podem diferir largamente e permanecer legítimas enquanto respeitarem a verdade de facto”. Daqui decorre que “a liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os factos não estiver garantida e se não forem os próprios factos o objecto do debate”.
Perante uma eventual alegação dos que considerem que não há factos independentes da opinião e da interpretação, Hannah Arendt garante que não há qualquer justificação para o esbatimento das linhas de demarcação entre o facto, a opinião e a interpretação. “Mesmo se admitirmos que cada geração tem o direito de escrever a sua própria história, recusamo-nos a admitir que cada geração tenha o direito de recompor os factos de harmonia com a sua própria perspectiva; não admitimos o direito de se atentar contra a própria matéria factual”. A filósofa escolhe um exemplo assaz adequado para tornar ainda mais claro o que pretende dizer, contando um episódio ocorrido nos anos vinte do século XX, com Georges Clemenceau, jornalista e primeiro-ministro da França durante a Primeira Guerra Mundial. Numa conversa amistosa com um representante da República de Weimar sobre as responsabilidades relativas ao desencadeamento da Primeira Guerra Mundial, o político francês foi instado a antecipar o que é que os historiadores futuros pensariam sobre tão embaraçoso e controverso problema. A resposta é eloquente: “Sobre isso nada sei, mas do que estou certo é que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha”.
Explica a filósofa que o resultado de as mentiras substituírem a verdade “não é as mentiras passarem a ser aceites como verdade, nem que a verdade seja difamada como mentira, mas que o sentido através do qual nos orientamos no mundo real – e a categoria da verdade relativamente à falsidade conta-se entre os recursos mentais para prosseguir esse objectivo – fique destruído”.
Hannah Arendt reflecte também sobre os atropelos à verdade numa obra seminal, O sistema totalitário (Lisboa: Publicações D. Quixote, 1978). É neste livro que a filósofa assinala a transformação de uma “característica da mentalidade da ralé” num fenómeno diário das massas populares: a “mistura de credulidade com cinismo”, que associa ao totalitarismo: “Uma mistura de credulidade e cinismo prevalece em todos os escalões dos movimentos totalitários”. Afirma a filósofa que, “num mundo incompreensível e em perpétua mudança, as massas haviam chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditavam em tudo e em nada, julgavam que tudo era possível e nada era verdadeiro”.
É isto o que, demasiadas vezes, nos é, de novo, dado observar, tendo a “mistura de credulidade com cinismo” um efeito deletério: perante uma convicção absurda, mil dúvidas avisadas são incapazes de a abalar; perante uma dúvida irrazoável, não há mil certezas que lhe ponham termo.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
Factos, opiniões e interpretações

DM
21 outubro 2018