No passado dia 16 realizou-se mais um exame de acesso à especialidade médica. Após 6 anos de universidade, esta prova tem como função seriar os recém-formados médicos a escolherem uma especialidade e continuarem o seu caminho formativo.
À semelhança do ano anterior, prevê-se que o incipiente desemprego médico em Portugal se continue a desenvolver pois serão vários os chamados “Médicos Generalistas” 1 que não encontrarão vaga na especialidade e ficarão tremendamente limitados num sistema de saúde que ainda não sabe muito bem como os integrar. Para a maior parte dos jovens desta geração, desemprego na área de formação não é propriamente uma novidade. E também os médicos não estão à parte da sociedade.
Porém, a peculiaridade do caminho de formação, desde o 1.º ano do curso até à verdadeira entrada no mercado de trabalho com plena capacidade de licença profissional, leva em média 11 a 13 anos para alguém que se forme em medicina. Compreende-se assim a urgência de refletir sobre este problema – particularmente no que corresponde ao número de alunos que entra em medicina todos os anos e às múltiplas tentativas de abertura de novos cursos em universidades privadas –, uma vez que qualquer medida tomada levará mais de uma década a refletir-se, sobretudo num processo que tem tendência a assumir um efeito de “bola de neve”, como já acontece em cursos como o direito, a enfermagem ou tantos outros no campo das ciências sociais.
Contudo, podemos ainda dizer que a grande fatia dos examinados da passada quinta-feira tornar-se-ão médicos internos da formação específica. Mas nem por isso a questão se reverte simples ou permita falar de um procedimento justo, se encararmos a justiça de um ponto de vista moral, lógico e do bom senso.
O exame são 100 perguntas de escolha múltipla baseadas num tratado de medicina interna norte-americano, onde as respostas são literalmente retiradas de um conjunto de mais de 1000 páginas, e que diferem muitas vezes por pequenos detalhes como percentagens ou outros valores estatísticos. Exige-se memorização. Muita.
Um exame assim, que tem por objetivo definir a especialidade numa profissão que demanda destreza de raciocínio e contacto diário com a condição humana, amiudamente no seu limite, torna-se simplesmente obsoleto.
Acordos e assinaturas pressagiam uma mudança no modelo da prova dentro em breve. Para algo substancialmente diferente? Como São Tomé, há que ver primeiro para crer.
E é precisamente sobre o conceito de avaliação que urge também pensar. Desde a entrada na faculdade que o perfil do estudante de medicina tende a ser não propriamente a de um bom aluno, mas a de um aluno que tem boas notas. 6 anos volvidos, e o já médico – ainda que impossibilitado de exercer medicina – é novamente confrontado com um exame que se torna o único elemento de avaliação decisor do seu futuro profissional.
Surge uma inevitável competição dentro de um grupo selecionado por um crivo que já antes promovera um perfil de pessoas globalmente muito focadas no seu percurso individual. Os mesmos colegas que estudaram juntos durante a universidade veem-se perante um exame que dará a fortuna a uns e o infortúnio a outros. Tudo acontecendo no mesmo dia, em meia dúzia de salas pelo país.
Há quem proponha que a média do curso deveria também ser um fator de ponderação direta na escolha da especialidade, mas para além das diferenças curriculares e avaliativas dos 8 cursos de medicina no país, não seria este mais um fator de promoção competitiva em busca de classificações, ao invés de uma estimulação à vontade de querer aprender e ser profissionalmente competente?
Um exame de acesso à especialidade que faz suceder uns à custa de outros. Currículos universitários que negligenciam uma medicina debruçada sobre doentes e um incentivo ao raciocínio clínico e científico. Uma escola secundária que se vangloria pela quantidade de alunos colocados em medicina e não pela qualidade intrínseca do seu pensamento crítico e reflexivo. Talvez falte mais no nosso sistema educativo uma avaliação curricular, de perfil e de competências práticas sobre os problemas do dia a dia.
Promovemos um estudante alienado e um médico competitivo, quando a realidade nos mostra que não existe um médico salvador de vidas. Existe uma equipa de médicos. Existe uma equipa de profissionais de saúde, que em cooperação, salvam vidas.
Que perfil de médicos estamos a escolher para o futuro da nossa sociedade?
Autor: Tomás Melo Bandeira
Exame de acesso à especialidade: que perfil de médicos estamos a escolher?
DM
25 novembro 2017