As ordens profissionais são associações de direito público e de autonomia reconhecida pela Constituição da República Portuguesa, criadas com vista à defesa, salvaguarda do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos, sublinhando-se ainda funções de regulamentação do exercício da profissão, bem como de controlo do respeito por normas deontológicas e disciplinares.
Permitindo o artigo 199.º, alínea d) da Constituição ao governo o exercício de tutela sobre a administração autónoma, na qual as Ordens se incluem, entendo que apenas cabe aqui uma tutela de legalidade e não de mérito. Esta questão foi alvo de discussão a propósito do regime jurídico das associações públicas profissionais e da possibilidade do Ministério Público desencadear processos disciplinares contra os membros das Ordens, medida que foi considerada uma intrusão na sua autonomia, uma vez que se trata de uma competência exclusiva dos conselhos de deontologia.
Certo é que essa intenção não veio a ser consagrada na Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, da criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais.
Este controle tutelar ressurge agora a propósito da recente aprovação dos projetos Lei sobre a Eutanásia, face ao teor do artigo 65.º, n.º 2 do Regulamento n.º 707/2016, Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (OM), que dispõe que “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia”.
Como é público, a aplicação dos projetos implica a intervenção de profissionais de saúde, sendo que o Projeto de Lei n.º 104/XIV, que obteve mais votos, exige sempre o parecer do médico orientador, a confirmação por médico especialista e, em determinadas circunstâncias, ainda a confirmação por médico especialista em psiquiatria.
Impedindo a citada norma do Regulamento de Deontologia que os médicos pratiquem a eutanásia, podendo estes, se o fizerem, incorrer na sanção de suspensão até ao máximo de 10 anos (violação de deveres consagrados nos regulamentos da Ordem e que visem a proteção da vida e da saúde das pessoas) ou mesmo expulsão (infração disciplinar que afete gravemente a dignidade e o prestígio profissional, retirando idoneidade ao médico para o exercício da profissão), nos termos do artigo 14º, nº 1, alíneas c) e d), n.ºs 4 e 6 do Regulamento Disciplinar da OM, não arriscarão sanções desta dimensão sem que tenha sido revogado o n.º 2 do citado artigo 65.º.
A questão complica-se porquanto a OM deu recentemente um parecer contra a eutanásia e o suicídio assistido, concluindo que os mesmos “não poderão ter lugar na prática médica”.
A OM não admite a revogação do artigo 65.º, n.º 2 e nem podia. Porque acima sempre estaria o juramento de Hipócrates – “a saúde e o bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações”; “guardarei o máximo respeito pela vida humana”. E não julgue tratar-se duma velharia do século V A.C., até porque a versão portuguesa é a fórmula de Genebra adotada em 2017 pela Associação Médica Mundial. Não sou médico mas não gostaria que os estudantes que concluíssem o curso de medicina fossem compelidos a prestar um qualquer “juramento de Catarina” ou mesmo um “juramento de Costa”.
Aos grupos parlamentares promotores da eutanásia restam dois caminhos, ou eliminam a intervenção dos médicos no procedimento da eutanásia, declarando-os atos não médicos, ou revogam indiretamente a norma regulamentar que proíbe ao médico a ajuda ao suicídio e a eutanásia.
O Bastonário da OM já disse que não tem de haver uma revisão do código deontológico no caso da aprovação da eutanásia, afirmando que “a lei não pode dizer qual é que vai ser a conduta ética dos médicos… que não pode ser imposta pelo poder político, porque senão acabava-se a essência das profissões”, acrescentando que “os médicos que praticarem a eutanásia não correm o risco de serem sancionados…, porque serão sempre despenalizados através da lei”.
A Assembleia da República tem competência formal – abdicando da democracia representativa atento que não constava dos programas dos principais partidos – para aprovar uma lei que aprove a eutanásia e que retiraria o efeito sancionatório ao médico que a praticasse. Mas não deixaria de ser uma machadada na autonomia da OM e, reflexamente, de todas as ordens profissionais.
Autor: Carlos Vilas Boas
Eutanásia e autonomia das ordens profissionais
DM
14 março 2020