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“Eu, porém, digo-vos...”

No evangelho do próximo domingo (Mt 5, 17-37), Jesus começa por afirmar que não veio revogar a Lei ou os Profetas (o Antigo Testamento[1]), mas dar-lhe “pleno cumprimento” (v. 17). E não apenas no sentido de, com Ele, se realizar o que antes era apenas promessa, mas de levar à plenitude o que já era revelação. Acrescenta que a maior ou menor grandeza de cada um não depende da capacidade de interpretar a Palavra (assim pensavam os escribas e fariseus!), mas de a pôr em prática, na sua integridade: “Aquele que transgredir um só destes mandamentos, por mais pequenos que sejam, e ensinar assim aos homens, será tido como um dos mais pequenos no Reino dos Céus. Mas aquele que os praticar e ensinar será tido como grande no Reino dos Céus” (v. 19). Por essas e outras razões, Jesus deixa claro aos seus discípulos: “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (v. 20), num apelo claro a uma forma de interpretar a Palavra de Deus e de a viver que tenha em conta o espírito da Lei e não apenas a sua letra, que contemple as Bem-aventuranças e não só os Mandamentos. Depois disto, o texto apresenta quatro antíteses, de um conjunto de seis, que se organizam da mesma forma: “Ouvistes o que foi dito (aos antigos) ... Eu, porém, digo-vos”. A técnica literária é a da contraposição, mas, de verdade, Jesus não está a contrapor o que Ele afirma com o que está dito, como se, a partir de agora, só o que Ele diz passasse a ser válido. Ao invés, está a dizer aos seus discípulos que o que foi dito deve continuar a ser observado, mas é necessário dar o salto para a medida alta da sua mensagem. De facto, não basta que os discípulos de Jesus se pautem pelo “não matar” (v. 21), é necessário que se controlem nos sentimentos (v. 22: “quem se irar”) e na linguagem (v. 22: “quem chamar imbecil”, “quem lhe chamar ímpio”), promovendo a vida e a cultura do amor e perdão em relação ao próximo. É neste contexto que se inscreve a afirmação seguinte: “Se estiveres a apresentar a tua oferta ao altar e aí te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa aí a tua oferta, diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e vem então apresentar a tua oferta” (vv. 23-24). Por esse motivo, a primitiva liturgia cristã colocou o abraço da paz antes do Ofertório. Não basta que os discípulos de Jesus evitem o adultério legal, é necessário que o não cometam no coração, pois é aí que acontece. Para isso, se requer a pureza no olhar e no desejar (v. 28). E, a propósito, Jesus usa uma linguagem exagerada, à boa maneira oriental, não para ser tomada à letra, mas para sublinhar a seriedade do que está a dizer: “Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e lança-o para longe de ti, pois te convém mais que se perca um só dos teus membros do que todo o teu corpo ser lançado na Geena[2]...” (v. 29). Não é necessário que os discípulos de Jesus jurem pelo Céu e pela Terra, por Jerusalém ou pela sua própria cabeça (vv. 34-36). No contexto das novas relações de amizade e confiança por Jesus instituídas, basta a correspondência entre o que se pensa e o que se diz, a transparência do “sim, sim; não, não” (v. 37; cfr. Tg 5, 12). Segundo um modo oriental de pensar, tal linguagem deve ser tão verdadeira a ponto de não ser necessário recorrer ao juramento que, por envolver a divindade, constituía uma forma de invocar Deus em vão. Sem entrarmos em muitos detalhes, facilmente se percebe que “Jesus não anulou a lei de Deus escrita nos livros do AT. Ao mesmo tempo, porém, sublinha que não se limitou a confirmar aquilo que fora dito. Pelo contrário, veio para dar-nos a revelação definitiva da vontade do Senhor. A lei antiga encontrou na sua palavra e no seu exemplo o complemento e a plenitude que lhe faltavam” (Giuseppe Barbaglio, “O Evangelho de Mateus”, in Aa. Vv., Os Evangelhos [I], ed. Loyola, Aparecida, 1990, p. 118). [1] Permanece válido, no seu conteúdo e mesmo nas suas mais pequenas letras, como o “yod” (jota) ou um pequeno traço (ápice) que, no alfabeto hebraico, estabelece a diferença entre letras muito parecidas. [2] A palavra grega Geena vem da expressão hebraica Geh Bem-Hinom, literalmente “vale do filho de Hinom” era um vale em torno da Cidade Antiga de Jerusalém que veio a tornar-se um depósito onde o lixo era incinerado.
Autor: P. João Alberto Correia
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6 fevereiro 2023