Nos finais do mês passado, o PS apresentou na Assembleia da República uma proposta de projecto de lei que visa reconhecer aos nubentes uma maior autonomia de vontade no plano da relação sucessória, permitindo o casamento sem que os dois cônjuges se tornem herdeiros um do outro, através de convenção antenupcial em que, além da escolha do regime de separação de bens, optem por renunciar à condição de herdeiro legal um do outro.
Desde a reforma do Código Civil de 1977 – que operou profundas alterações no Direito de Família, na sequência da aprovação da Constituição de 1976 –, o cônjuge sobrevivo passou para a primeira e segunda classes sucessórias com os descendentes e os ascendentes e a integrar, sozinho, a terceira classe, se o falecido não deixar descendentes nem ascendentes; e a ser herdeiro legitimário ou forçado na referida ordem de sucessão legítima.
E mais: passou a gozar de um privilégio em relação aos descendentes do de cujus, já que a sua parte nunca poderá ser inferior a um quarto da herança, vantagem que é ainda maior em relação aos ascendentes, na medida em que o cônjuge terá direito a dois terços da herança e os ascendentes a um terço.
Este novo estatuto sucessório conjugal foi então muito criticado pelos juristas e mal aceite pela opinião pública.
Na verdade, apesar de se reconhecer que, em muitos casos, o regime anterior não dava ao cônjuge supérstite uma protecção adequada e que o regime supletivo de bens em vigor (comunhão de adquiridos) não lhes conferia, em caso de viuvez, garantia bastante de se poderem manter à custa da sua meação nos bens adquiridos por ambos durante o casamento, sobretudo atento o facto de muitas mulheres continuarem afastadas do mercado de trabalho, houve a percepção de que se fora longe de mais na sua protecção.
E também de que o novo regime era contraditório com as razões que, em 1966, levaram o legislador a substituir o regime supletivo de comunhão geral de bens pelo de comunhão de adquiridos – evitar que o casamento seja um meio de aquisição patrimonial e impedir que os bens mudem de linha familiar –, sendo certo que estas razões se mantinham válidas.
E esta percepção tornou-se ainda mais forte pelo facto de as novas alterações no âmbito do Direito de Família haverem estendido o divórcio ao casamento canónico e de se passar a admitir o divórcio por mútuo consentimento.
Torna-se, assim, incompreensível que tenha sido num momento em que foi posta em causa a instituição tradicional do casamento e a sua força social e em que o matrimónio passou a ser encarado como um mero contrato vinculativo entre as partes que o novo estatuto sucessório tenha vindo reafirmar a densidade da instituição familiar, no que ao casal dizia respeito, que justamente o regime supletivo vigente havia negado.
Ora, apesar de ser verdade que, por lei, o cônjuge divorciado ou separado não herda e que sempre se poderia dizer que os casamentos duráveis e, eventualmente, bem sucedidos poderiam justificar um direito de herança, não é menos certo que muitos casamentos há que apenas se mantêm de fachada (ou para garantir aos filhos uma vida normal ou pelo escrúpulo moral e religioso de um dos cônjuges ou, simplesmente, por apatia de ambos ou pelo temor dos custos e consequências económicos do divórcio).
Quer isto dizer que à medida que se foi assistindo ao reforço do casamento- negócio, o legislador manteve-se impávido e sereno, nada fazendo para alterar o polémico estatuto sucessório que perdeu ainda mais a sua razão de ser.
E assim tem permanecido, não obstante haver a consciência de, com essa omissão, estar a permitir a defraudação de outras normas, designadamente a que obriga a que o casamento das pessoas com mais de 60 anos tenha de ficar sujeito ao regime imperativo de separação de bens para evitar os casamentos por interesse.
Mas, mais do que isso: permite-se que se mantenha a quebra de um princípio tradicional do direito sucessório português segundo o qual os bens se devem manter na mesma linha familiar.
E, como se sabe, no caso de casamentos sucessivos – que são cada vez mais frequentes –, bens que deveriam pertencer aos filhos de um dos cônjuges acabam, por via da sucessão, por pertencer ao cônjuge sobrevivo e, à morte deste, muito possivelmente, a estranhos!
Não admira, por isso, que inúmeros divorciados ou viúvos evitem casar-se de novo apenas para não prejudicarem os filhos de matrimónios anteriores.
A meu ver, como no de conceituados civilistas que sobre o tema se têm debruçado, seria preferível que a lei negasse ao cônjuge o estatuto de herdeiro legitimário, curando antes de evitar que seja colocado em situação de necessidades económicas e optando por um regime mais consentâneo com a autonomia da vontade.
Do que venho de dizer, parece-me que, embora pouco ousada nos seus propósitos, a proposta socialista tem o inegável mérito de abrir à discussão uma matéria em redor da qual, ao longo de mais de 40 anos, se têm vindo a acumular sérios argumentos em abono da sua alteração.
Autor: António Brochado Pedras