Afinal de contas, o que somos nós? E digo nós, porque sei bem que todos somos feitos da mesma argamassa. O povinho sabe o que diz. Embora às vezes não pareça, lá tem as suas razões para sentenciar que, para conhecer o vilão, não há como meter-lhe a vara na mão. É ver o condutor dos transportes públicos, muito senhor de si, com ar de quem tem Santo Amaro na barriga, “decretar ao poviléu” que se empilha nos estribos:
– Não quero aí ninguém, isto é um espaço exclusivo para os autocarros e quem manda aqui sou eu, por isso, desapareça antes que chame a polícia, – desabafa o senhor Cunha, com ruído e nervosinho colateral para a arritmia cardíaca.
E é verdade. No corredor destinado ao transporte público e perante a inconformidade do condutor estacionado abusivamente, embora não pareça, quem “manda” ali é ele. Pois toca de fazer valer a sua regedoria exasperada, que pouco lhe importam os argumentos ou atrapalhações de cada um, para justificar o injustificável. Porque – está-se mesmo a ver – as pessoas deixam-se ficar uma eternidade nos corredores “bus”, a prejudicar quem tem compromissos , e às vezes, só para, às tantas, por pirraça, aquecer o diálogo inevitável entre os intervenientes.
Isto parece-lhe um absurdo, não parece? Mas pode ter a certeza que há quem creia neste absurdo, como se, realmente, nós andássemos cá para complicar a vida uns aos outros, esquecidos de que o mais útil seria efectivamente o mais fácil e desejável, que seria ajudarmo-nos de cara alegre e respeitosamente pelos deveres de cidadania e boa mente da aprendizagem que tivemos nas escolas de condução e a civilidade que nos exige cumprimento das regras do Código de Estrada.
Mas não. Ali, quem manda é o senhor Cunha, ameaçando com medidas de coacção por parte da entidade actuante e fiscalizadora, mas da qual, ironicamente, não há sinal.
Bem, podemos passar a vida a pregar estas coisas. E o disparate está, afinal de contas, muita vez, em se atribuir a desníveis de condição social a razão de certos atritos com que se atormentam as pessoas bem formadas e portadoras da aflitiva mania se se doer das desgraças alheias, porque o senhor Cunha – tomara ele que o deixem andar em paz – tem de afirmar que realmente que quem manda ali, é ele; porque o “manda-chuva” do escritório, apesar dos seus dotes de aconselhamento relaxantes, lá lhe vai atenuando o tremelicar das queixas avolumadas de que a cidade está cada insuportável e complicada para conduzir e estacionar o autocarro no espaço que lhe confere por direito adquirido.
- Você sabe que há gente assim, também não sejamos dramáticos, pois parece-me, que, no meio disto tudo, ainda há os que não são de má “raça” como os demais. São excepções, – sossega o chefe do senhor Cunha, afectivamente “enamorado” com o braço sobre o ombro num cenário de convite à calma.
Não falemos mais, por hoje. Guardemos o resto para amanhã. Estamos num período natalício e devemos pautar-nos pela compreensão da azáfama das pessoas, ter arrojo e tolerância na elevada quantidade de automóveis com que deparámos nos locais impróprios de estacionamento, deixar as autoridades atuar conforme o desempenho das suas decisões, transmitir uma mensagem aos cidadãos, num raciocínio de bem-estar social e não fazer das nossas reivindicações um título de propriedade irreversivelmente fechado, percebeu senhor Cunha?
Autor: Albino Gonçalves
Está difícil conduzir para o senhor Cunha…
DM
23 dezembro 2019