twitter

Esquisito este primeiro-ministro

Dou comigo a pensar na passividade geral em Portugal perante determinadas situações relevantes no âmbito político, mas graves do ponto de vista de uma democracia que se quer consolidada.

Se há algo que é essencial a uma democracia é a distância que tem de existir entre o exercício da atividade política e a atividade jornalística.

Sempre pasmei com as notícias que relatavam os telefonemas que o ex primeiro-ministro José Sócrates fazia aos jornalistas, diretamente do Palácio de S. Bento, perante notícias que o desagradavam. Conversas muitas irritantes e desagradáveis que vieram muitas vezes a público e de que deram conta, entre outros, quer o ex diretor do Público, José Manuel Fernandes, quer Mário Crespo , ex-jornalista da SIC.

Antes disso ainda me lembro de António Guterres, enquanto primeiro-ministro, só aceitar ser entrevistado desde que soubesse os temas da entrevista e o teor das perguntas que lhe iriam fazer, chegando mesmo publicamente a referir isso.

Cavaco Silva ou Passos Coelho, por outro lado, sempre pautaram a sua atuação como governantes com uma distância pessoal entre jornalistas e pagaram até com isso algum preço dado que nunca tiveram a chamada “boa imprensa”.

Sei que a memória é curta para alguns, mas ainda me lembro das notícias nada favoráveis do jornal semanário Expresso a Pinto Balsemão quando este foi primeiro-ministro.

Esta atitude contrastante entre os dirigentes máximos do PSD e do PS poderá ter origem, provavelmente, pela visão mais estatizante que estes últimos têm da sociedade mas que não deixa de ser menos democrática no que às relações entre imprensa e poder político dizem respeito. Por alguma coisa é que o PS só muito depois do PSD é que deixou de defender a propriedade estatal dos meios de comunicação em Portugal, algo sempre defendido pelo Partido Social Democrata desde os tempos de Sá Carneiro.

O atual primeiro-ministro, ao longo da sua vida política, tem sido pródigo na deficiente relação da imprensa com o poder político.

Desde logo pela atitude de revolta, até com alguma violência de postura, para com uma jornalista que um dia lhe apareceu pelas costas a fazer uma pergunta.

Foi o caso também com uma entrevista da Rádio Renascença que acabou abruptamente quando era questionado sobre as questões autárquicas, nomeadamente da Câmara do Porto.

Aconteceu também quando um dia respondeu de uma forma muito irritado no decorrer de uma entrevista na RTP, quando era questionado sobre a continuidade do ex-ministro das Finanças Mário Centeno no Governo. Questão perfeitamente cabível como se sabe.

Por vezes António Costa parece que perde mesmo a cabeça perante situações que o confrontam. Não teria grande importância se fosse um cidadão normal, mas já como secretário-geral do PS ou primeiro-ministro não se espera que aja assim. Todos se lembram da irritação que teve perante um idoso em campanha eleitoral e a troca de palavras violenta que teve com ele.

Recentemente, até com a ministra da Saúde, chegou a apelidar como mentirosas as suas afirmações perante uma plateia de especialistas da saúde, o Presidente da República, o Presidente do PSD e outros responsáveis políticos, tendo a reunião acabado em seguida.

Agora no recente episódio dos médicos, aquando da entrevista ao Expresso, que sai (pasme-se) em dois fins de semana seguidos, há algo de bastante grave e que demonstra perfeitamente a relação perniciosa que existe com os responsáveis da comunicação social:

A questão não é se a conversa divulgada foi em off ou não. Não há questões privadas de um primeiro-ministro perante jornalistas sobre assuntos de alto relevo público, como é a tragédia do Lar de Idosos de Reguengos de Monsaraz que envergonham o Portugal do 25 de Abril.

Os jornalistas não são caixa de ressonância de um governo, mas têm de espelhar, divulgar e tornar público tudo que interessa para a sociedade. E a atitude do primeiro-ministro perante a classe médica e a responsabilidade que lhe imputou não tem relevo público?

Então a imprensa deverá fechar os olhos quando os responsáveis políticos, sobre assuntos importantes, agem e pensam de maneira diversa à que têm quando estão a ser entrevistados? A revelação desse comportamento não constituiu um direito à informação do público?

Bem esteve o Bastonário da Ordem dos Médicos que, perante uma audiência com o chefe do Governo longe da imprensa, não hesitou em revelar que o primeiro-ministro não transmitiu fielmente em público a postura que teve durante a reunião.

No mínimo esquisito para a democracia, não é ?


Autor: Joaquim Barbosa
DM

DM

2 setembro 2020