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Escafederam-se

Onde está aquela sociedade de brandos costumes como era justamente apelidada a sociedade portuguesa? Onde está o horror em matar o pai ou a mãe por ambição ou pressa de herança? Era impensável termos juízes e magistrados presos ou suspensos por prática de prevaricações várias. Mas onde vai isto parar? Já tínhamos tido um primeiro-ministro preso, deputados, presidentes de câmara, secretários de Estado, banqueiros e outros de igualha semelhante, implicados nas maiores trafulhices! Onde está a amor à integridade moral? Por onde anda o respeito pelo outro que agora se espanca, esfaqueia ou se rouba com a maior desfaçatez? Paro por aqui, porque não quero enegrecer o quadro que de si nada tem de belo. O que falta a esta sociedade que tinha a vida humana como inviolável e sabia e sentia que havia valores que não podia destruir? O que se passa assim de tão grave que determine uma viragem de bons costumes para maus ou péssimos hábitos? O que está a falhar? Falta educação a nível de valores individuais, quer eles viessem da religião, quer viessem do humanismo ateu. Os seus “púlpitos” calaram-se? Os seus princípios falharam o alvo? Talvez não; o que verdadeiramente se passa é que não há ouvidos para escutar esses púlpitos. Tudo se tornou relativo, isto é, cada um encerra em si a verdade universal, e esta é a razão de tudo, mesmo que esteja contra a razão de todos. Não se respeitam os pais, não se ama o irmão, não se quer saber do amigo porque, nesse relativismo, o egoísmo é o senhor absoluto do comportamento individual. Antigamente a sociedade era a juíza desses comportamentos. Quando algum se desviava dos valores que constituíam essa sociedade, era envergonhado com repúdio veemente. Mas essa sociedade, que premiava ou repudiava o modo de agir das pessoas, já não existe porque é constituída por indivíduos que fazem do livre-arbítrio o julgamento dos seus atos. Se o seu livre arbítrio lhe diz que está bem assim, qualquer desmando é aceite e, pior, assumido e absorvido. As leis que prendem os infratores são o remédio da forca, mas falta-lhes o castigo de pelourinho, isto é, da sociedade de dantes; falta a punição do escândalo público para criar vergonha na cara. A sociedade atual está como a televisão, mostra o desastre mas de imediato passa ao anúncio do biberão das crianças lactantes. Tudo tão fugaz como a viração. Castigo fácil culpa fácil. O castigo assim é efémero como o relâmpago. Será preciso insistir no trovão para mostrar que, sem vergonha, estamos perante uma sociedade de indivíduos que nunca serão pessoas. Ser pessoa e ser com os outros. Mas não podemos pedir à árvore seca que dê frutos, quer dizer, não podemos exigir a esta sociedade que seja melhor. Para isso torna-se necessário dizer aos pais, educadores, religiões, humanistas, que urge fazer uma revisita aos seus conceitos de educação; em casa, na escola, em público é preciso obrigar as crianças a ter consciência do que pode ou não fazer para que vejam e sintam que a vida em comum não é um somatório de eus mas antes uma maneira de transformar o eu em nós. É difícil? Julgo que basta dizer não quando não pode dizer sim. Deixem chorar que dilata os pulmões e faz bem ao coração. É preciso que a complacência se distinga da conivência. Isto pode acontecer se tornarmos o perdão num vício porque os valores antigos acobardaram-se, fugiram com medo, isto é, escafederam-se.
Autor: Paulo Fafe
DM

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24 setembro 2018