Numa viagem de comboio, quando estava próxima a paragem numa estação em que um amigo meu, com quem conversava, ia descer, apareceu um cavalheiro muito bem trajado, conhecido do companheiro de viagem, que o cumprimentou e, depois, me foi apresentado.
O comboio parou, o meu amigo saiu, despedindo-se com a sua gentileza habitual. A viagem prosseguiu e, pouco depois, passou de novo por mim a pessoa que me tinha sido apresentada. Pediu licença, sentou-se ao meu lado. E disse-me: “Se não o aborreço, gostava de trocar impressões consigo sobre alguns assuntos”. Respondi-lhe que o faria com todo o gosto, embora não soubesse se estaria à altura de tratar as questões que ele queria abordar.
Perguntou-me: “O senhor, que é padre, acha que é justo, segundo a sua religião, que um homem, antes de chegar à vida, não seja consultado previamente por Deus. Isto é, não seria mais correcto, da parte de Deus, antes de pôr no mundo um homem, perguntar-lhe: “Queres existir? As condições são estas. Aceitas ou não?”
Respondi-lhe que para um cristão a questão que estava a pôr era um pseudo-problema, porque sendo Deus totalmente perfeito em Si mesmo, o era também nas acções que realizava. Por isso, sempre que criava um novo ser humano era para o seu bem absoluto e não para o condenar a uma existência má, dolorosa e sem qualquer esperança de poder vir a ser boa.
Ficou pensativo, mas não convencido. “Se assim é, porque se vê tanta injustiça, tanto sofrimento, tanta maldade...”. “Não se esqueça, atalhei, que Deus não nos criou para este mundo, mas para uma felicidade total, que não termina e sempre satisfaz, nunca cansa, porque viveremos no seu amor e na sua presença, participando para sempre da sua própria felicidade... A isso chamamos o Céu. E todo o homem, além de poder lá chegar, tem sempre o apoio de Deus, se não o rejeitar ...”
Não se deu por satisfeito. “Mas mesmo que isso seja verdade – eu não sei se isso é como diz –, penso que Deus deveria dar-nos a opção de existir ou não existir. Nós escolheríamos o que se nos afigurasse mais adequado às nossas possibilidades e aos nossos desejos”.
Insisti. Entre uma escolha de Deus e a de um sujeito humano, há a distância entre quem escolhe com absoluta perfeição e quem se pode enganar, apesar da sua boa vontade e parecer. Uma escolha divina, voltei a observar, é sempre perfeita em si mesma e, no caso de envolver uma criatura, como um ser humano, só pode ser o melhor para ela.
Querer o mal ou não querer o bem dessa mesma criatura seria um a injustiça de Deus, incompatível com a sua perfeição e o seu amor misericordioso. A opção de um ser limitado como nós, essa, sim, ao não ser eventual e totalmente perfeita, pode estar sujeita ao lapso, à ilusão e ao engano. E lembrei-lhe o aforismo: “Errare humanum est...”
Retorquiu-me com vigor: “Senhor Padre. Só se engana quem quer ou é preguiçoso. Nunca me enganei na vida, desde que cheguei à maturidade. Trabalho diariamente muitas horas, dirijo três empresas cheias de saúde. E não sei o que é isso do engano ou da ilusão. Nunca dei um passo em falso. Sempre acertei nas minhas opções. Por isso, nunca precisei do parecer de Deus para orientar a minha vida. Volto a dizer: só se engana quem quer ou quem é preguiçoso. Certamente que temos de ser cautelosos, saber bem os passos que damos para não cairmos e sermos achincalhados...”.
A viagem terminou e despedimo-nos. Algum tempo depois, encontrei o amigo que mo tinha apresentado. Perguntei-lhe por aquele seu conhecido. Fez uma cara de dó e contou-me. Numas obras que começara para aumento do edifício de uma sua empresa, não reparou num degrau que estava a ser arranjado, tropeçou, caiu, fez fractura de crânio, partir um braço e, salvo erro – dizia-me – a cânula do nariz... Está hospitalizado. “Coitado, foi um passo em falso...”. Este “coitado” levou-me a pensar que deveria ter para com ele os mesmos sentimentos e não aqueles que me saíram ao saber do sucedido: “Bem feito…Vê se aprendes…”
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva
Errare humanum est
DM
5 agosto 2018