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Em tempos de Quaresma

Temos consciência, certamente, de que estamos em plenos dias quaresmais, desde há pouco mais de oito dias. Na quarta-feira da semana passada comemoraram-se as “Cinzas”, que nos foram postas pelo sacerdote que celebrava a Eucaristia, lembrando que essas cinzas nos falavam do nosso destino terreno, que é efémero e transitório: “Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás-de voltar”

A palavra “Quaresma” vem do latim “quadragesima” e refere-nos o número quarenta, que tantas significações tinha para a mentalidade hebraica. De facto, 40 dias esteve Noé na sua Arca e 40 dias esperou até dela sair para terra seca; 40 dias Moisés se demorou no monte Sinai para aí receber a Lei que Iavé lhe confiou; 40 anos palmilhou o povo de Israel no deserto, após a sua libertação da servidão do Egipto, até entrar na Terra Prometida, onde corria leite e mel; 40 anos de paz viveu Israel durante a chefia dos Juízes; 40 dias tardou Elias para chegar ao Monte Horeb, onde Deus lhe falou; a 40 dias de penitência se obrigaram os ninivitas para obterem o perdão divino, e 40 anos recordam os reinados dos três primeiros monarcas de Israel, Saul, David e Salomão.

Enfim, já no Novo Testamento, recordemos os 40 dias, depois do seu nascimento, da apresentação de Jesus no templo, a circuncisão e a purificação de Sua Mãe, Maria Santíssima; os 40 dias de preparação penitente da vida pública do Senhor, com um profundo jejum, além dos 40 dias em que Jesus ressuscitado acompanhou os apóstolos para lhes dar os últimos ensinamentos e recomendações, que são fortalecidos depois com a vinda do Espírito Santo, no Pentecostes.

Não é de fundação apostólica a celebração do mistério pascal. Mas a Igreja sempre procurou dignificar a Páscoa e, pouco a pouco, foi aumentando os dias da sua preparação. No início, ao que parece, havia uma longa vigília de oração, que culminaria com a celebração eucarística. Mais tarde, entre os séculos II e III da nossa era, ter-se-ia incluído a liturgia baptismal.

Mas estes eventos não tardaram a ser ampliados. Tertuliano (155-220) fala de um jejum prévio a esta celebração de dois dias e a Didascália (século III) já o assinala com uma extensão de uma semana. Testemunhas competentes como St. Ambrósio (330-397) e St. Agostinho (354-430) apontam o Domingo de Páscoa e os dois dias prévios como o “Triduum Sacrum”. E é ainda no século IV que já se pode vislumbrar a existência de uma preparação pascal prévia com a duração de 40 dias: a “Quadragesima”, ou seja, a Quaresma.

Antes da alegria da Ressurreição, com a vitória de Cristo sobre a morte, o cristão é convidado a acompanhá-Lo de perto na sua ida para a Cruz e ao terrível sofrimento físico e psicológico por Ele suportado, com as humilhações mais encarniçadas que Lhe tentaram infringir os seus algozes e as autoridades do tempo. Aprendamos com o Senhor a aceitar a vontade de Deus, quando, no Jardim das Oliveiras, perante o cenário trágico e doloroso que prevê, Se dispõe a fazer integralmente o que o Pai Lhe pede, custe o que custar e independentemente do seu querer: “Pai, se é possível, afasta de Mim este cálice. Mas não se faça a minha vontade, mas a tua” (Mac.14, 36)

O Domingo de Páscoa, como já referimos, celebra a Ressurreição de Jesus. A morte a que O submeteram, não O impediu de continuar a sua obra salvífica, porque o seu aparecimento aos Apóstolos e a tanta gente provou o que lhes dissera: venceria a lei da morte. Ele, que é o autor de toda a vida, incluindo a nossa, não foi reduzido ao silêncio e ao desaparecimento absoluto com a sua morte corporal.

Venceu-a, convidando-nos a seguir o que nos ensinou. Cristo nunca nos defraudou com aquilo a que Se comprometeu. Sempre cumpriu. Regozijemo-nos com a sua Ressurreição. Antes, porém, com humildade, aproximemo-nos da sua Cruz e saibamos pedir-Lhe perdão por, tantas vezes, não sermos capazes de fazer o que nos indica. E ouviremos da sua boca as mesmas palavras que aí proferiu: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!” (Luc 23,34).


Autor: Pe. Rui Rosas da Silva
DM

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16 março 2019