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EM DESAGRAVO DA PEQUENA VALENTINA – VÍTIMA DAS PAIXÕES DESTRUTIVAS

No domingo passado, isto é, no dia 10 de maio, Portugal viu-se mergulhado numa espécie de sociodrama coletivo quando a comunicação social noticiou a morte da pequena Valentina, de apenas 9 anos de idade, ocorrida em Atouguia da Baleia, uma localidade próxima de Peniche. As verdadeiras causas e circunstâncias do crime não são ainda conhecidas, mas tudo aponta para que, na base de um desfecho tão repugnante e condenável, esteja um grave conflito de natureza familiar. Seja como for, a morte de uma criança de 9 anos é, a todos os títulos, incompreensível e injustificável, porquanto nega a moral e a cultura dominante do mundo contemporâneo. Quando, em pleno século XXI, uma criança inocente morre às mãos de seus pais, a humanidade parece regredir aos tempos bárbaros, cujos costumes permitiam que os progenitores – particularmente o pai, já que também era dono das respetivas mães –, abusassem, matassem ou vendessem os filhos. Povos antigos sacrificavam crianças em ritos religiosos – note-se que esse costume foi condenado por Deus quando mandou Abraão suspender o sacrifício de Isaac –, prática a que certos reis judeus recorreram matando os seus filhos, como Manassés (Reis II, 21:6), mas também os filhos dos outros, como o episódio dos 70 filhos de Acab (Reis II, 10:1). O mesmo costume era praticado pelos reis aztecas, os quais, para aplacarem as fúrias de Yum Chac, deus da chuva, ofereciam em sacrifício pequenas virgens, que atiravam para o fundo de um poço, a troco dos elementos naturais necessários à vida coletiva do grupo. Em numerosos povos antigos e modernos são conhecidas também práticas eugénicas ou seletivas perpetradas contra nados-vivos considerados fisicamente imperfeitos, ou portadores de deficiência, cujo exemplo mais clássico foi o infanticídio sistemático das crianças consideradas inaptas para a guerra praticado pela lendária Esparta. Mas também tribos ameríndias chegavam a enterrar vivas as crianças que apresentassem defeitos corporais. Todavia, e apesar dos ganhos civilizacionais em matéria de direitos da criança, nomeadamente direitos de personalidade jurídica, educação e bem-estar, é sabido que a mesma, na sua fragilidade física, psíquica e moral, é ainda vítima de todo o tipo de abusos que recorrentemente são reportados pela comunicação social. O motivo dos reis judeus era político; o dos aztecas, religioso; o dos ameríndios ou espartanos, seletivo. Mas que motivo fundamenta a morte de uma criança como Valentina? Não é político, não é religioso, não é seletivo ou eugénico. Mas também não é racional, porque, se o fosse, o matador perceberia que a suposta eliminação de um mal multiplicaria esse mesmo mal por si – pois jamais conseguirá livrar-se das suas nefastas consequências psíquicas e morais– e por todo um vasto conjunto de pessoas que são afetadas pela perda de um ser em potência, cuja maturação plena é interrompida de forma brutal e irreparável. Nesta ordem de ideias, a fundamentação do crime de Peniche, só poderá ser encontrada na esfera das paixões destrutivas que despoletam sentimentos de ódio e os correlativos fenómenos de ordem criminosa. Mas não podendo uma criança inocente ser a causa direta do distúrbio psíquico que originou a tragédia, então, teremos de encontrá-la no campo das patologias morais que afetam o homem contemporâneo. Na verdade, a sociedade do nosso tempo, ao deixar de fazer a educação das paixões, caiu num novo ciclo dionisíaco, larvar e autodestrutivo, que, de uma forma paradoxal e inconsciente, o torna perigoso antagonista de si mesmo. Tal contradição está na base da ditadura dos sentimentos individuais que têm vindo a abalar os alicerces da casa comum, com a imposição dos antivalores do egoísmo, da violência gratuita, do hedonismo desenfreado, da solidão psicadélica, etc. Deste modo, citando Thomas Hobbes, em A Natureza Humana, a turpitudo, enquanto conceito ou signo da maldade, continuará a destruir a pulchritudo, enquanto signo ou conceito da bondade encarnada pela infeliz Valentina. Nesta hora de profunda tristeza, não passo de um magoado ator a comunicar o seu pathos a um anfiteatro vazio e a sentir a voz rechaçada pelas arquibancadas da indiferença. A morte de Valentina é catarse que nunca farei, é desterro que também mereço, pelas muitas cedências que fiz à paixão e pelos muitos pecados que cometi contra o Amor universal.
Autor: Fernando Pinheiro
DM

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14 maio 2020