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Eleições: a candidatura de Cícero ao consulado, em Roma (6)

O capítulo II deste pequeno Manual da Campanha Eleitoral faz menção aos dois adversários de Cícero nesta corrida para o consulado. São eles o célebre Lúcio Sérgio Catilina e Gaio António Híbrida, tio do famoso advogado Marco António. Quinto aproveita para denegrir a imagem destes dois rivais e desde logo remata a questão com um argumento ad hominem: a tua condição do homo novus muito há-de beneficiar com estes dois adversários de linhagem nobre, pois ninguém dirá que a sua condição de nobres os ajudará mais a eles que os teus méritos a ti (ut nemo sit qui audeat dicere plus illis nobilitatem quam tibi virtutem prodesse oportere: II.7). Com efeito, Catilina e António, se são adversários difíceis (molesti sunt: II.8), porém, impendem sobre eles, os vitupérios mais indesejados: ambos são assassinos desde a infância (ambo a pueritia sicarii), vivendo na miséria (ambo egentes). António é mesmo acusado de ter sido expulso do senado na sequência da avaliação dos melhores dos censores (ex senatu eiectum scimus optimorum censorum existimatione: II.8). Com efeito, anos antes, aquando da sua passagem pela província da Acaia, na Grécia, enquanto comandante da cavalaria de Sila, por altura das Guerras Mitridáticas, cometeria tais atrocidades, como saques, aos quais nem os lugares sagrados escaparam, que determinaram esta sua expulsão do senado, corria o ano 76 a. C.; tais desmandos haviam ainda de outorgar-lhe o agnome de Híbrida, numa alusão a esta sua parte de natureza selvagem, própria de uma fera, como a ele se refere Plínio-o-Antigo, na sua História Natural, no Livro VIII, capítulo 79. Os censores são homens que já tinham percorrido as diversas magistraturas, e eram eleitos, a cada cinco anos, de entre os antigos senadores; exerciam o seu mandato durante dezoito meses e estavam encarregados de fazer o censo / recenseamento dos cidadãos, classificando-os segundo a sua riqueza; eram eles que zelavam pela boa conduta dos cidadãos e procediam à revisão da lista dos senadores, substituindo-os por outros, se fossem considerados indignos da investidura. E foi isto que sucedeu com António Híbrida, que viria a alcançar o consulado, juntamente com Cícero. De facto, António contraiu tantas dívidas que os seus bens foram confiscados (eorum alterius bona proscripta vidimus: II.8) e acabaria condenado por insolvente. As suas dificuldades financeiras já o haviam obrigado a pedir apoio a dois banqueiros gregos, Sabídio e Pantera, na sua candidatura a pretor, em 67 a. C. (in praetura competitorem habuimus amico Sabidio et Panthera: II.8). E que dizer do segundo adversário, Catilina? Quinto carrega as tintas na descrição do acto horrendo que foi o homicídio de Marco Mário, seu cunhado, um homem muito caro ao povo de Roma (hominem carissimum populo Romano, M. Marium: II.10). E não esquece de chamar à colação ainda dois episódios de natureza idêntica: a chacina dos cavaleiros romanos, aquando da sua entrada na vida pública (cuius primus ad rem publicam aditus in equitibus R. occidendis fuit: II.9) e o episódio da morte, por suas próprias mãos, de um homem excelente, Quinto Cecílio, marido da irmã, cavaleiro romano, sem partido, pacífico por natureza (in quibus ille hominem optimum, Q. Caecilium, sororis suae virum, equitem Romanum, nullarum partium, cum sempre natura tum etiam aetate iam quietum, suis manibus occidit: II.9). Catilina não teme as leis, é capaz de subornar juízes e demonstra tanta audácia, tanta maldade e, enfim, tão grande habilidade e destreza para dar rédea larga aos seus excessos (qui tantum habet audaciae, tantum nequitiae, tantum denique in libidine artis et efficacitatis), que chegou a abusar dos filhos vestidos com a toga pretexta, quase no regaço de seus pais (ut prope in parentum gremiis praetextatos líberos constuprarit). Com uma barra cor de púrpura, tal como sucedia com certos magistrados, esta toga era vestida pelos meninos de condição livre até aos 16 anos, altura em que eles passavam a usar a toga virilis, completamente branca. Em suma: António e Catilina são dois candidatos sem estatuto moral para uma candidatura ao cargo de relevo que pretendiam, o consulado. A caminhar para o fim deste capítulo III, Quinto recorda a eleição de Gaio Célio, outro homem novo, em 94 a. C., embora fosse muito inferior pelo nascimento e superior em quase coisa nenhuma (ac tamen eorum alterum Coelius, cum multo inferior esset genere, superior nulla re paene, superavit: III.11), numa luta desigual com dois candidatos nobres, a quem os talentos naturais e os predicados em muito superavam a importância do berço de nascimento, isto é, a linhagem familiar. Depois deste exemplo promissor, Quinto, dirigindo-se a Cícero, exorta-o a colocar em acção os dotes que a natureza e os estudos lhe concedem (si facies ea quae natura et studia quibus semper usus es largiuntur) e então não será difícil vencer estes dois competidores, cuja fama é mais conhecida pelos seus vícios do que pela sua linhagem (qui nequaquam sunt tam genere insignes quam vitiis nobiles). E deixa a pergunta retórica: por acaso, haverá por aí cidadão tão malvado que queira desembainhar, num único sufrágio, dois punhais contra o Estado? (quis enim reperiri potest tam improbus civis qui velit uno suffragio duas in rem publicam sicas destringere?)
Autor: António Maria Martins Melo
DM

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5 outubro 2019