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E sentou-se à nossa mesa…

A história foi já partilhada por um dos protagonistas, primeiramente ao microfone da Rádio Renascença e depois em livro (Na noite mora a promessa, Paulinas Editora, 2014). Tem ares de Suave Milagre, de Eça de Queirós, mas não é de todo um conto. Passou-se precisamente há 22 anos, na casa paroquial do Santuário Nossa Senhora de Fátima, no 19.º bairro de Paris, lugar que ainda hoje continua a congregar uma importante comunidade católica portuguesa. Éramos uma dezena de jovens, quase todos lusodescendentes – como hoje soe dizer-se – que decidiram juntar-se para uma ceia de Natal antecipada com o pároco.

Conversava-se animadamente no adro, antes de iniciar os últimos preparativos para a convivial refeição. A dado momento, um dos membros do grupo perguntou se alguém conhecia aquele homem que, a uma dezena de metros, elegera um dos recantos exteriores do templo para instalar uma caixa de madeira e meia dúzia de haveres. Era um SDF, responderam prontamente os outros. Era um Sem Domicílio Fixo – como indica a fria e impessoal sigla instituída no século XIX – que rondava por aquelas paragens há alguns dias. Alguns já lhe tinham dado uma moeda ou dirigido uma breve saudação, mas aquele homem, com cerca de 50 anos, de origem magrebina, continuava a ser para nós uma criatura quase transparente.

Entretanto, o sem abrigo pegara numa caixa de madeira, virou-a do avesso e amanhou uma mesa de fortuna. Abriu uma lata de conserva e começou a comer. “E se o convidássemos a cear?”, insistiu a jovem, determinada em não largar o assunto. Seguiram-se uns instantes de surpresa para uns, de hesitação para outros. Uns segundos depois, todos anuíram. Claro que sim. Nada fazia mais sentido do que aquele convite naquele final de tarde.

O homem ficou surpreendido, mas aceitou. Trocámos algumas palavras de circunstância. Entrou connosco em casa. Enquanto uns ultimavam a refeição e outros punham a mesa, um dos membros do grupo – que naquela época vivia na casa paroquial – foi ao quarto buscar uma camisa de flanela, umas calças, uma camisola e alguns artigos de higiene. Entretanto, o jantar ficou pronto. Sentamo-nos à mesa. A conversa foi-se animando. Alguém perguntou ao nosso convidado se gostava de bacalhau. Falou-se de gastronomia, de tradições, de religião. Um pouco mais tarde, soubemos que era argelino, de confissão muçulmana. Viera para França, com a mulher e os filhos. Volvidos uns anos, divorciou-se. Mais tarde, ficou sem emprego, acabando por perder tudo. Hoje, vivia na rua.

Estávamos já na sobremesa, quando alguém se lembrou que ainda não conhecíamos o seu nome. "Mas, como se chama?", perguntámos. Olhou para nós pausadamente e respondeu: "Jesus". Durante uns instantes, pousou entre nós um suave silêncio… Como alguém escreveu um dia, a propósito deste episódio, “o seu nome ressoa, até hoje, na nossa memória e no nosso coração."


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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21 dezembro 2019