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E nada era igual

A casa onde o Eduardo nascera tinha sido substituída por uma de arrendamentos. A magia de outrora, esvaía-se como uma névoa que se roça na montanha. As recordações desses tempos, ainda que firmes de memórias, mostravam-se-lhe saudosos dos tempos que haviam passado. O lugar, esse sítio onde as recordações eram mais fortes do que a memória, estava outro: mais casas, mais gente, mais movimento e tudo isto formava mais solidão interior. Uma solidão nostálgica Parecia-lhe impossível que assim fosse. Deveria ser o contrário. Mas não era. E não era porque nada ali fazia eco das correrias com a rapaziada, da descoberta de ninhos, dos sítios onde havia mais uvas temporãs. Percebera agora: faltava-lhe os cheiros de outrora fortes como os que recendiam das lavradas ou vinham de mansinho como suave perfume das flores do jardim da entrada. Era o mesmo terreno, mas não era o mesmo sítio. Os sentidos de adulto seriam diferentes dos sentimentos da criança? Onde estavam os daquele menino que por ali, em noites de luar de verão tinha olhado para o céu e achara as estrelas bonitas? E perguntava quem as pusera ali paradas como pedras presas ao fundo de um poço invertido; que serventia tinham se não se mexiam! De inteligência percetiva muito viva e de coração sensível, não percebia como era possível haver crianças que iam descalças para a escola e ele tinha botas feitas à medida! Onde estava a velha escola? Olhava à sua volta e não a encontrou. Havia uma nova com telhas francesas. Alguém, um velho, pediu licença para se sentar. Calado ficou por largo tempo como quem toma balanço para qualquer salto. “Foi aqui, disse o velho, que o vi cair de cima da cerdeira; caiu como um sapo mas levantou-se como uma lebre. A senhora sua mãe fez um griteiro que assustou o lugar. Sou o Tomé, senhor..., sou o seu parceiro de carteira”. O Eduardo deu-lhe um abraço tão forte que ele pediu para o deixar respirar. “ A cerdeira mataram-na para ali colocarem um coreto. Sabe o que senti quando a vi no chão? As mesmas dores do herbanário da Morgadinha dos Canaviais. Quando os algozes a derrubaram ouvi os berros que se lhe soltavam das raízes. O quintal da Casa do Terreiro foi engolido pelo bloco de casas que daqui se vê”. A casa está desfigurada e mataram-lhe a alma, meu caro Tomé trocaram o perfume pelo frasco. Meu velho, a saudade é uma ferida crónica, quanto mais se lhe toca mais sangra. Tomé saiu. O Eduardo ficou sozinho, sentado no banco de pedra do largo do cruzeiro com o dilema que dentro dele se digladiava: amar o progresso que tanto tinha defendido nos seus escritos e o engulho que sentia por esse mesmo progresso ter matado os seus lugares de menino. Passaram crianças a correr; nenhuma ia descalça, nem rota, quiçá faminta; iam para as suas brincadeiras em reboadas de alegria. Eduardo refletiu: valeu bem a pena terem matado o passado a favor destas crianças do presente. Encontrou neste pensamento uma resignação suave, como quem deita água em ácido. Era a brisa depois da tempestade. Um murmúrio íntimo segredou-lhe: ainda bem que nada é igual.


Autor: Paulo Fafe
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20 junho 2022