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Duma década a outra (1)

1. Quando o ano, ou o século (como em 1999) termina em 9, a questão ressurge: quando termina a década (ou o século)? Desde logo, parece mais intuitivo uma referência “redonda”: as décadas são períodos de dez anos e, por isso, parece natural ser a 1 de Janeiro de 2020 o início dos anos vinte; afirmar que a década terminou em 2019 assenta talvez numa espécie de hábito cultural que junta os anos que trazem a década no nome (os anos 90 iniciaram-se em 1990, os anos 00 em 2000, os anos 10 em 2010, os anos 20 em 2020).

E não falta quem considere que a década terminou em 31 de Dezembro, e muitas organizações publicaram documentos em que fazem o balanço dos anos compreendidos entre 2010 e 2019. Assim, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), num relatório recente, assegura que o último decénio foi uma “década mortífera”, anotando mais de 170.000 violações graves (assassinatos, violações, recrutamentos forçados ou sequestros) dos direitos das crianças em cenários de conflito, o que equivale a mais de 45 casos por dia. Também o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, anunciou a criação em 2020 – ano em que a organização comemora o seu 75.º aniversario –, dum plano para uma globalização justa, chamada precisamente de “Década de Acção para os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável”. É assim ainda que Ângela Merkel, no discurso televisivo de Ano Novo – o 15° da Chanceler (no poder desde 2005) –, afirmou, num apelo de esperança: "Os anos 2020 podem ser uma boa década”. A chefe de governo, de 65 anos, quis assim enfatizar a mensagem dum novo ano e também duma nova década.

2. Todavia, é no ano terminado em 1 que realmente começa a década; e a explicação parece simples, tendo a ver com o modo como contamos os anos: uma grande parte do mundo utiliza o calendário gregoriano, estabelecido pelo Papa Gregório XII, em 1582, que considera ano 1 o do nascimento de Jesus Cristo. Aliás, os estudiosos da Alta Idade Média adoptavam o sistema de numeração romana, que não possuía o número zero (algarismo criado pelos árabes, só mais tarde introduzido no sistema numérico ocidental). Assim, passou-se do ano 1 a.C. imediatamente para o ano 1 do primeiro milénio; com o fim do ano 1, seguiu-se o ano 2 e por aí adiante, até ao ano 10. Por isso, todas as décadas começam nos anos 1 e terminam no final dos anos que terminam em zero; estamos, pois, na década que começou no ano de 2011 e que termina em 2020.

3. Compreende-se que nós, portugueses, queiramos afastar decisivamente e afugentar das nossas mentes a lembrança duma década tão adversa quão aflitiva, exauridos que fomos com a crise a que fomos sujeitos, com a Troika a ditar as nossas finanças e um governo a querer “ir além da Troika”. Foram anos de medo que atingiu trabalhadores, reformados, velhos e novos, pois também estes foram atingidos, desde o ambiente pessimista que os rodeava à falta de apoios que os pais (diminuição dos salários) e os avós (corte nas reformas) já não lhes podiam dar. Nesses anos lia-se na imprensa que "os portugueses estão a cortar no azeite, no pão e nas frutas" (e sabia-se que o governo de então queria ainda cortar seiscentos milhões na segurança social). Se citámos a mensagem de Merkel para a nova década, a crise por que passaram alguns povos europeus poderia ter sido superada airosamente se a União Europeia a isso não fosse forçada por países do Norte de Europa.

4. Todavia, não vá a ânsia de mudar de página – mudar de década – criar ilusões. Se as coisas mudaram – e mudaram alguma coisa –, mercê quer dalgumas medidas de recuperação de rendimentos implementadas pelo governo seguinte quer da conjuntura internacional favorável, a verdade é que vamos iniciar (ou findar) a década com pesados sacrifícios sempre aos mesmos – a classe média; ora foi ela quem pagou a crise e não vê ainda minorada a sua situação de exaustão. Se, na década que já findou (ou vai findar) houve um “enorme aumento de impostos”, essa enormidade nem foi mitigada e parece até aumentar no orçamento prestes a ser aprovado; como flagrante exemplo refira-se o IVA na electricidade que continua nos 23%, o que não se entende! Vou de vez em quando à Alemanha, e, ao analisar a factura do supermercado, a maioria dos produtos têm a taxa mínima de IVA, e alguns poucos são taxados a 19% (taxa máxima); em Portugal, a uns poucos produtos é aplicado 6% e à maioria 23%. Se aí me desloco duma cidade a outra e utilizo auto-estradas, não há portagens. Para quando uma folga à classe média?

Em Portugal, não se fale nos “ricos” – como o faz certa esquerda radical –, pois também esses vivem à custa da classe média – desde a educação à saúde –, com o dinheiro em paraísos fiscais. É a classe média que tudo paga, que neste início (ou fim) de década volta a ter de pagar mais impostos, alguns porventura já não pagáveis (ou pagando-os, não sobrevivendo).

Mas sobre a década que finda (ou que se inicia) há mais a dizer...

O autor não segue o nefasto e impropriamente denominado acordo ortográfico.


Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
DM

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4 janeiro 2020