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Duas ou três coisas sobre a morte nos jornais*

Um casal espanhol – Luis Miguel Fontán Brea e Laura Sanz Nombela – foi a Paris no início do ano. O hotel escolhido para alojamento foi o Mercure Paris Opéra Lafayette, no número 7 da Rue de Trévise, no 9.º bairro. Não muito longe, fica a Ópera de Paris. O casal chegou à capital francesa numa sexta-feira. A viagem foi uma surpresa que Luis Miguel decidiu oferecer a Laura. Era a tardia lua-de-mel que, por razões várias, nunca antes tinha podido ser gozada. Foram, por isso, sozinhos. Os três filhos, com 3, 5 e 10 anos, ficaram com os avós, os pais de Laura. Na manhã do dia seguinte, uma explosão de gás na padaria localizada em frente ao hotel provocaria a morte de quatro pessoas. Uma era Laura. A tragédia suscitou ao filósofo Fernando Savater uma reflexão sobre a questão da morte. Foi publicada em Janeiro, na coluna que ele semanalmente assina na última página do diário espanhol El País, e oferece uma assinalável excepção ao modo habitual como a morte se apresenta na imprensa. Se, no caso português, os espaços fixos dedicados a obituários não são comuns, a morte abunda nas páginas em que se noticiam os casos do dia. Acidentes, crimes e doenças invulgares de pessoas comuns ou vulgares de gente famosa são os motivos que mais frequentemente a convocam. Também há – é verdade – os anúncios da necrologia. E há ainda uma espécie de mundo paralelo de certas revistas, que, apesar de serem consideradas cor-de-rosa, exploram até ao negrume mais sórdido a morte de figuras públicas ou dos que, pelas circunstâncias em que as mortes ocorreram, são episodicamente merecedores da atenção generalizada. Intitulado “O encontro”, o texto de Fernando Savater recorda um conto sufi. Um criado do sultão de Bagdad vê a Morte no mercado. O gesto estranho que ela lhe faz assusta-o. Quer escapar-lhe. Pede autorização ao seu amo e foge para Samarra, cidade que fica a mais de uma centena de quilómetros. Depois, é o próprio sultão que avista a Morte. Dirige-se a ela para lhe perguntar por que ameaçou o criado. A Morte responde que não o ameaçou. Apenas ficou surpreendida ao ver o criado em Bagdad porque tem, à noite, um encontro com ele em Samarra. O fio da meada do filósofo é a viagem a Paris de Luis Miguel e de Laura: “Laura era uma toledana, tinha três filhos e nunca tinha saído da Espanha. O seu marido, um romântico […], preparou-lhe como presente de Ano Novo uma viagem surpresa a Paris. Começar a ver o mundo em Paris parece muito boa ideia. Mas lá encontrou-se com o horror inesperado, a explosão de gás, a morte peremptória, inadiável: o encontro em Samarra. Agora penso na angústia desse homem apaixonado, culpando-se sem culpa pelo que aconteceu. Penso também nas três crianças, esperando em vão pelo regresso da mãe”. Fernando Savater interroga-se, por fim, sobre onde o aguardará o definitivo encontro em Samarra e talvez seja essa questão o motivo principal do escrito. Todos os dias os jornais incluem notícias susceptíveis de proporcionar a cada um – e não apenas aos filósofos – idêntica interpelação. *Apesar de poder parecer um assunto de Quarta-feira de Cinzas, é um pequeno extracto da intervenção com que participei no I Congresso Internacional A Morte: Leituras da Humana Condição, que teve lugar em Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor, entre 21 e 24 de Fevereiro, na mesa-redonda “A morte mediatizada e mediática: Retratos e olhares dos narradores”.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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10 março 2019