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Do imponderável e dos atavismos

Repescando o epítome popular da filosofia cartesiana, o célebre “penso, logo existo”, bem poderíamos acertar, em jeito de consolo e numa espécie de silogismo apressado, que o atual confinamento obrigatório permite a muitos portugueses afirmar mais vincadamente a sua existência. Não me refiro, obviamente, àqueles que pelo exercício de funções essenciais – da saúde aos supermercados, dos serviços de segurança à produção de bens ou produtos de primeira necessidade – estão acometidos por um stress adicional e, por isso, menos predispostos para exercícios de lógica especulativa, vistos como diletantes. Dirijo-me aos muitos que estando em teletrabalho, como o autor destas linhas, ou num lay off forçado, sintam algum tédio ou sensação de cerco, no ambiente doméstico. A estes últimos também lhes sobra mais tempo para pensar e, logo, na visão de Descartes, para redescobrir a sua efetiva existência.

Não se zangue, caro leitor, não obstante eu estar a reclamar um tanto da sua paciência.

Esgotar placidamente o crédito dos dias que a fortuna nos tenha atribuído, por si só, será sempre manifestamente pouco para provarmos da nossa existência, por mais lógica que desenvolvamos, estará a contrapor.

De facto, mais do que o simples existir, todos os homens ou mulheres, cristãos, de outros credos, ou absolutamente céticos tão-só, procuram encontrar ou definir o caminho para a sua felicidade. Numa versão do senso comum, que conta com o acolhimento de Thomas More na sua Utopia, a felicidade, transitória, poderá resumir-se na fruição da saúde. Exatamente, o bem de que mais se fala agora, num tempo em que a morte parece ridicularizar a segurança de muitos projetos de vida. A saúde, sempre, obviamente. Pessoalmente, gosto de valorizar a perspetiva, o conselho, de Benjamim Franklin que sustenta que a felicidade humana não é tanto o resultado de grandes doses de sorte, que raramente acontece, mas das pequenas vantagens que ocorrem todos os dias. Recorrentemente, aproveito mesmo esta citação para procurar incutir nos meus alunos a perceção da importância do trabalho, do esforço e da disciplina para o alcance de objetivos meritórios, para a necessária alimentação dos seus melhores sonhos.

O tempo que vivemos agora, todavia, está deveras marcado pela imponderabilidade, e logo menos permeável à perspetiva de B. Franklin, valorizadora da atenção no longo prazo. Fixemo-nos em analogias mais pertinentes. Revisitemos tempos com alguma afinidade com o presente, igualmente marcados pela urgência e volatilidade do momento, ainda que então num registo mais agudo. Nas pestes medievais, como na terrível Peste Negra (1348) de que aqui falei numa crónica anterior, a omnipresença da morte, imprevisível, baralhava os comportamentos e a mentalidade. Todos mais ou menos aterrados: uns exacerbavam a sua religiosidade flagelando-se em público e, enquanto clamavam pela misericórdia divina, proclamando o fim dos tempos; outros, de modo oposto, seguiam os caminhos da devassidão e da festa, num tempo que sentiam da despedida terrena. Uns, piedosos, socorriam repetidamente os doentes, ao ponto de entregarem a sua vida nesta missão; outros, muito temerosos, abandonavam até os familiares mais próximos quando neles vislumbravam os primeiros sinais da peste. Em diversas cidades europeias, os bairros judeus eram atacados e incendiados pela populaça, que procurava assim aplacar a ira divina, a morte, alegadamente resultante do acolhimento prestado aos responsáveis pela morte de Cristo. Os Papas verberavam e puniam os flagelantes ou os incendiários dos bairros judeus, de parceria com as autoridades civis, mas estes comportamentos tendiam a repetir-se.

Não obstante os inúmeros progressos da ciência médica – como da tecnologia ou de outras ciências –, designadamente desde o século XVIII quando surgiram as primeiras vacinas, todos apreendemos, mormente com a atual experiência de vida, que inimigos invisíveis, como esta terrível COVID-19, podem ridicularizar ou abanar seriamente todas as certezas, todas as previsões estabelecidas, desde a longevidade média e outros indicadores sanitários até à economia, atingida violentamente por inextricável conexão.

Muitos séculos depois da ocorrência da Peste Negra, não podemos esperar uma mimetização de comportamentos e ocorrências, mas, volto a insistir, detetam-se deveras diversas recorrências ou semelhanças. Os media têm referido algumas insensatas “festas do corona”, alegadamente visando a rápida obtenção da imunidade para os participantes através do contágio, que quase evocam as diversões daqueles que na Idade Média procuravam a distração ou o prazer maior no “fim dos tempos”. Os media têm igualmente reportado, designadamente em Espanha, alguns casos de profissionais de saúde que, depois de “teimosamente” empenhados na assistência aos doentes da COVID-19, têm sido “premiados” por vizinhos que lhes vandalizam os automóveis ou lhes exigem que abandonem as suas residências, na expectativa de afastar a fonte de contágio que representem, comportamentos agressivos e incivilizados que trazem à memória aqueles que na Idade Média atacavam os judeus que, acusavam, atraíam a morte para as cidades cristãs.

Globalmente, porque mais educada, a população será hoje mais respeitadora do outro, menos dada a desmandos supersticiosos como sucedeu durante muitos séculos no passado. Mas a mentalidade, como se pode constatar, é assunto de lenta mutação.

Sobre a imponderabilidade, remetendo-nos ainda para o título desta crónica, todos concordaremos, agora, que parece apostada em revisitar demasiadas vezes o calendário da nossa existência.


Autor: Amadeu Sousa
DM

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21 abril 2020