1. No texto anterior (dia 9), aludimos à “Declaração Universal dos Direitos Humanos” (DUDH), que, no passado dia 10, completou 70 anos, e que, em 30 artigos,enumera os direitos humanos fundamentais (civis e políticos, económicos, sociais e culturais).Em 1948, no rescaldo duma das maiores barbáries que os homens cometeram contra seres humanos, foi em Paris, no Palácio de Chaillot, na zona do Trocadero – onde poucos anos antes Hitler olhava a cidade-Luz, querendo dominar o mundo –, que 56 representantes dos 58 Estados-membros das Nações Unidas, aí reunidos (as duas grandes alas, em elegante curvatura, sugerem um abraço), na hora mítica da meia-noite, já a cidade dormia, aprovaram a DUDHpor 48 votos a favor, sem votos contra, e 8 abstenções (Arábia Saudita, África do Sul e 6 países do Bloco Soviético).
A DUDH, texto que marcou uma viragem coperniciana, está entre os mais influentes que os humanos elaboraram para toda a genteem toda a parte:com ela, começou, nas palavras de Bobbio, A era dos direitos (título de um dos seus livros) – trata-se de direitos universaise inalienáveis– passando-se depois do plano utópico ao da positivaçãodos direitos.
Ora, neste século XXI, a problemática dos direitos humanos tem uma dupla actualidade – teórica e prática: teórica,porque a análise do problema tem sido no sentido da defesa e expansão de tais princípios axiológicos a toda a humanidade; prática,porque a nossa época revela um inquietante paradoxo: se, por um lado, se busca a implementação desses princípios, verifica-se, por outro lado, que a sua violação é massiva, constatando-se mesmo um retrocesso civilizacional em várias zonas do planeta.
E a interrogação é crucial: onde está a igualdadequando há ainda escravidão? Como é possível que o abismo entre a população super-rica e a pobre seja maior hoje que ontem? E que, da riqueza produzida num ano, 82% vá para 1% dos mais ricos, enquanto a metade mais pobre nada recebe? Importa meditar na mensagem do Papa Francisco (Dia Mundial dos Pobres): “Não é de protagonismo que os pobres precisam, mas de amor que sabe esconder-se e esquecer o bem realizado”. De facto, a desigualdade aumentou no último ano: 42 indivíduos possuem a mesma riqueza que 3,7 biliões mais pobres; um ano antes, eram 61, em 2009, eram 380.
2. Já se ouviu que aDUDHcarece de revisão, já que, por um lado, importa adaptá-la ao novo mundo da revolução tecnológica, em particular da robotização, por outro, são direitos proclamados no Ocidente e que pouco ou nada têm a ver com a diversidade dos povos que têm uma outra visão. Concordo com a afirmação de Jorge Sampaio: “Nos tempos que correm, rever a Declaração será abrir uma caixa de Pandora com consequências imprevisíveis e, a meu ver, todas negativas. Evitemos um passo desnecessário”.
Quanto ao 1º ponto, julgo que os problemas da celeridade técnica e darobotização crescente já são considerados, pelo lado dos efeitos:são sempre questões que estão já contidas na DUDH,em qualquer um ou vários dos trinta artigos, cujo 1º se expressa assim: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
Assim, a própria DUDHcontém em si a exigência de uma constante avaliação, de modo a tratar novas realidades, por ex., a“Declaração sobre o Meio Ambiente” (1972), ou a “Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos” (1997) – para dar só dois exemplos. De facto, hoje, com as descobertas científicas em vários domínios, novos direitos humanos se requerem em favor da dignidadeda pessoa humana, o mesmo valendo para os direitos colectivos da humanidade – da nossa e das gerações futuras –, desde a defesa ecológica, a paz, o desenvolvimento; neste contexto, testes nucleares, devastação florestal, poluição industrial e contaminação de fontes de água potável, além do controlo exclusivo sobre patentes de remédios, constituem ameaças aos direitos das actuais e futuras gerações.
A experiência histórica mostra que o próprio conceito de humanidade se vai completando, à medida em que indivíduos, povos, ou grupos oprimidos resistem à condição que se lhes impõe. A história dos direitos humanos é, neste sentido, também a história dasresistências e dissidências; tais tensões estão também na génese de novos “sujeitos humanos” a reclamarem atenção – as mulheres, as crianças, os anciãos, os índios, os negros, os grupos minoritários latino-americanos, etnias, etc.
3. A outra questão, assaz complexa – a que voltaremos –, é a da conciliação dos direitos enunciados na DUDH, universais e inalienáveis, com a diversidade dos povos, o que é contestado pelo multiculturalismo, mais propriamente pelos vários comunitarismos: para estes, aDUDHseria uma súmula de princípios, de matriz ocidental, que não tem sentido transposta para outros povos, com outros princípios e costumes
O autor não escreve segundo o denominado acordo ortográfico
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha