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DIFÍCIL MAS AUSPICIOSO RECOMEÇO: O DOM DAS LÍNGUAS

A nova fase de desconfinamento que se iniciou no Domingo, marcada significativamente pelo recomeço das celebrações religiosas, muito especialmente das eucaristias comunitárias, coincidiu com a festa do Pentecostes que, na liturgia cristã, celebra o acontecimento inaugural da Igreja Católica. Numa das leituras da missa dominical, foi evocado o trecho do livro dos Actos dos Apóstolos que narra a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos de Jesus Cristo e Sua Mãe Maria e outros seguidores, que permaneciam trancados no cenáculo desde o dia da Ascensão do Senhor, com medo dos judeus, e como essa descida os desconfinou, abrindo à Humanidade novos horizontes de fé e de esperança e rasgando caminhos para a evangelização. Diz o texto: “De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.” Então, ao ouvir tal ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, “pois cada um os ouvia falar na sua própria língua”, exclamando, atónitos e maravilhados, “Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então para que cada um de nós os oiça a falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!” Através deste belo trecho, que sublinha a riqueza da diversidade linguística e de povos e nações, emerge claramente o plano de Deus para que, apesar da dificuldade que essa variedade de línguas acarreta, os seres humanos se compreendam e unam para alcançar a paz, através do amor ao próximo, no respeito pela igualdade na diferença. No difícil momento em que quase todos os povos do mundo iniciam um processo de desconfinamento gradual, depois da pandemia da Covid-19 e das trágicas consequências que determinou, é bom que tenhamos presente as lições da tragédia e do Pentecostes. Num mundo globalizado, mas nem por isso mais justo nem mais pacífico, em que subsistem imperialismos dominadores de povos sobre outros povos, violações flagrantes e frequentemente impunes do direito internacional, actos de desrespeito da alteridade e faltas de solidariedade e de diálogo, impõe-se, mais do que nunca, que divulguemos e aprendamos as línguas e culturas uns dos outros, para que seja possível o entendimento, a paz e a fraternidade universais e para que, juntos, possamos vencer esta pandemia e ultrapassar a presente crise e outras que o futuro nos reserve. Importa, pois, vencer a diferença e a ignorância das línguas e das culturas e as divisões e barbárie que fomentam e fazer a apologia da humildade, da riqueza na diversidade, do respeito pelo outro, do amor pelo próximo e do diálogo permanente. Das mais de 7.000 línguas existentes no planeta, tenhamos a noção de que, não obstante a sua maior ou menor importância e seja qual for o número dos respectivos falantes, todas são fundamentais para a compreensão do mundo e dos seus mistérios e de que nenhuma é dispensável. O sonho de uma língua universal é perfeitamente utópico, porque supõe um inverosímil poder dominador capaz de eliminar todas as outras. E a prova disso é o esperanto. Em todo o caso, há línguas como a portuguesa que podem ser apontadas como veículo paradigmático para a compreensão mundial: os seus falantes originais souberam divulgá-la, incorporar influências alheias, aprender outras línguas e levar a sua fé e cultura a todos os cantos do globo. E de tal forma o fizeram que, hoje, o nosso idioma é a língua materna de mais de 250 milhões de pessoas! Por isso, neste difícil recomeço de vida, tenhamos consciência do dom inestimável das línguas que a descida do Espírito Santo veio enfatizar e da transcendente missão que a todos é atribuída: proclamar o Evangelho e as maravilhas de Deus, que é amor, caridade, justiça, fraternidade e liberdade, sempre no respeito pela igualdade, na diferença, de línguas, culturas, raças e credos. Se tivermos a sabedoria, a inteligência, a paciência, a humildade e o sentido de responsabilidade que essa alta missão reivindica, então poderemos ser dignos de colher os frutos que o Espírito Santo prodigaliza a quem assim procede: paz, amor e alegria. Está nas nossas mãos o recomeço de uma vida nova e de uma nova eclesialidade. Não é tarefa fácil. Mas vale a eternidade!
Autor: António Brochado Pedras
DM

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5 junho 2020