Hoje é o dia maior da saudade; e de ver e sentir, frente à realidade e silêncio dos túmulos, como a vida é breve e a morte inevitável; sobretudo, de sofrer a ausência, aqui dos avós e pais, ali de um irmão, de um cônjuge, de um tio e além de um amigo, de um vizinho, de conhecido simplesmente. E dizermos interiormente como quem reza;
– Ainda há dias cá estava; ainda no ano passado cá esteve.
E mais dolorosamente:
– Morreu tão novo ainda; tinha tanta vida pela frente.
Hoje é o dia maior da saudade; e de nos lembrarmos que o efémero peregrinar pelo mundo nos deixa, apenas, esta dimensão real, cruel e universal de que somos pó e em pó nos havemos de tomar, como Deus disse a Adão após o pecado original – memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris.
Mas, ir aos cemitérios apenas uma vez por ano não é seguramente a melhor forma de celebrar os nossos mortos; porque, se os não lembramos todos os dias nas pequenas como nas grandes ocasiões, nas doces como nas amargas lembranças, em todas as suas marcas e cicatrizes humanas, materiais e espirituais, maus netos, maus filhos, maus cônjuges, maus irmãos, maus sobrinhos … maus amigos somos.
Todavia no mundo hostil em que vivemos, onde o relativismo, o materialismo, o hedonismo e o ateísmo grassam, vorazes e implacáveis, as pessoas não têm ou não querem ter tempo para lembrar esta efemeridade da vida; e, sobretudo, com a pressa de viver, de chegar primeiro a meio e a todos os lados, deixa-se para trás o essencial do que nos é exigido como seres essencialmente gregários e familiares que somos.
E, assim, visitar os nossos mortos com regularidade, como uma obrigação afetiva e efectiva, não entra no uso desta estranha forma de vida que nos consome e domina; e se, há muito tempo, as lágrimas já secaram e nos esquecemos facilmente do passado, o impulso da aproximação e da afetividade deixa de ter sentido para corações assim empedernidos.
Depois ir aos cemitérios somente neste dia, como é muito habitual, para mostrar que se vale mais ou possui mais do que os outros, nas flores, nos mausoléus, na compunção ou para se redimir, perante os vivos, da indiferença e da ausência para com os seus mortos durante as suas vidas, não é a melhor forma de celebrar o dia da memória, e dia de todas as memórias; e dia maior de saudade que seguramente não existe, ativa e viva, nos seus corações.
Pois bem, ao menos que as flores oferecidas e as lágrimas vendidas, frente ao silêncio e a realidade, nua e crua, dos túmulos e ao menos uma só vez no ano, tenha assistido o propósito de fazermos de cada dia uma jornada de paz e amor que nos leve a sermos mais solidários e fraternos, e aos governantes mais atentos e justos, e aos patrões mais humanos e retos, e aos trabalhadores mais conscientes e responsáveis; e, em geral, nos tornarmos melhores pais, melhores filhos, melhores cônjuges, melhores cidadãos, enfim, todos mais empenhados na construção de uma sociedade mais solidária, equitativa, fraterna e livre.
Hoje é o dia maior da saudade; e, agora, que seja o momento de sentirmos, frente ao silêncio e à realidade, nua e crua, dos túmulos que, mais tarde ou mais cedo, sempre mais cedo do que mais tarde, para aqui viremos fazer companhia eterna aos nossos mortos e como eles mortos seremos; e de sentirmos que seremos pó a juntar ao pó que eles são; e, então, pensarmos que também os nossos filhos e netos, ao menos uma vez por ano nos venerarão publicamente com flores ou sem flores, com mausoléu ou sem mausoléu, com epitáfio ou sem epitáfio, compungidamente ou não.
Que este dia maior da saudade desperte em nós, ainda pobres mortais, a certeza de que para quem morre o mais importante é a bagagem que leva e para quem fica são as obras que ele deixa e por ele falarão para sempre.
Então, até de hoje a oito.
Autor: Dinis Salgado
Dia maior da saudade
DM
1 novembro 2017