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Despenalização da eutanásia: a caixa de pandora

Em Portugal temos o hábito de olhar para o estrangeiro e fazermos comparações. Pois, neste caso dos passos que estamos a dar no debate sobre a legalização da eutanásia, vale a pena olharmos para os dois países em que essa legalização é um facto: a Holanda e a Bélgica.

O caso holandês está historiado com todo o rigor em “Eutanásia – O Caso Holandês”, de Daniel Serrão1 que, no Comité Director de Bioética da Conselho da Europa, acompanhou o processo durante anos a fio. Se compararmos o trajecto holandês que levou à despenalização da eutanásia com os passos que estão a ser dados em Portugal, verificamos muitas semelhanças.

Também na Holanda a proposta inicial que levou à primeira lei, aprovada em 1993, apresentava-se com todos os cuidados e cautelas: uma regulamentação muito estrita, um processo burocrático muito rígido e salvaguardas que pareciam seguras e impeditivas de desvios.

Uma vez a lei aprovada, a sua aplicação foi perdendo consistência e abriu caminho a uma segunda lei, aprovada em 2001, que considera a eutanásia já não é um homicídio despenalizado, mas um acto médico; isto é: o que antes era um crime, passou a ser considerado boa prática clínica.

Com a metáfora do rio: a garganta apertada por onde a água devia passar deu lugar a margens largas onde o rio se espraia à vontade. Verificou-se a chamada “rampa escorregadia” (“slippery slope”).

Tudo começa, portanto, com formulações rigorosas, que parecem prevenir descaminhos; depois as comportas abrem e ninguém está seguro. Como digo no título: legalizar a eutanásia é abrir a Caixa de Pandora.

Olhando ainda para o caso holandês, há um dado rarissimamente referido: a Holanda, país subscritor da “Convenção dos Direitos do Homem” do Conselho da Europa, tem uma controvérsia não solucionada com o Comité Director dos Direitos do Homem devido à legalização da eutanásia que introduziu no seu quadro jurídico, recorrendo aos mais diversos expedientes para atrasar a tomada de decisão do Comité de Ministros do Conselho sobre essa controvérsia2.

O pedido da despenalização da eutanásia é sempre justificado alegando a autonomia do doente, justificação, em meu entender, filosoficamente insuficiente. Mas mesmo que o fosse, isso não implicava que a despenalização da eutanásia fosse politicamente aceitável, porque aquela despenalização terá um impacto profundo na confiança que deve pautar a relação “profissional de saúde-doente”. Para salvaguarda dessa relação que deve ser de absoluta confiança, em termos de políticas públicas não é aceitável a despenalização da eutanásia; o exercício dos direitos de uma pessoa não pode pôr em causa os direitos das outras.

Os projectos de lei que foram debatidos na Assembleia da República apresentam redacções muito cuidadas. O do Partido Socialista propõe a admissão da despenalização da eutanásia “em circunstâncias especialmente circunscritas” (p. 2), e que deve resultar da “ponderação de direitos e valores constitucionais” como a vida humana, a dignidade da pessoa e a autonomia individual (p. 3).

Sem dúvida nenhuma, mas não se deverá levar em grande linha de conta as consequências da despenalização nas relações “profissional de saúde-doente”? À imprensa as autoras do projecto de lei do PS disseram que nele não está em causa um desrespeito da vida por parte do Estado.

Ora o Estado, quando legisla sobre a eutanásia, tem de pensar nas consequências que a sua despenalização terá para a segurança de todos. Por mais cautelas que se tenha, recorrendo a registos e outras salvaguardas, a despenalização da eutanásia porá em causa o elemento fundamental na relação “profissional de saúde-doente”: a confiança.

No início do mês de Maio o correspondente da RTP na Bélgica, falando sobre a eutanásia naquele país, apresentava um quadro de total serenidade, sem dificuldades nem problemas graves. Se tivesse falado com psiquiatras belgas ou com enfermeiros portugueses que lá trabalham em hospitais, teria encontrado um quadro diferente. Dos primeiros teria ouvido que cada vez mais profissionais de saúde aparecem nas consultas com problemas psicológicos causados pela aplicação da lei.

1 SERRÃO, Daniel - «Eutanásia - o caso holandês». BRITO, José Henrique Silveira de (Coord.) - O fim da vida. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2007, pp. 121-140

2 SERRÃO, Daniel - «Eutanásia: a controvérsia no Conselho da Europa» http://www.danielserrao.com/gca/index.php?id=118


Autor: José Henrique Silveira de Brito
DM

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12 junho 2018