Tinha o título de “
Paizinho” um sintomático fado de Manuel Dias, com letra de António Fonseca, incluída num disco editado há 54 anos pela
Ofir. Em oito tercetos, contava-se uma história que se julgaria banalíssima, exceptuando porventura o desfecho: “Certa noite desditosa / No meu lar abençoado / Esta cena se passou // Zanguei-me com minha esposa / E no momento irado / Bati-lhe e ela chorou. // Nesse momento por fim / Depois que tudo acabou / Entre lágrimas e ais // Alguém se abraçou a mim / E me pediu a chorar / Paizinho não batas mais! // Tive tanta piedade / Quando ouvi dizer também / Olha que se ouve na rua // Paizinho por caridade / Não batas na minha mãe / Tem pena, recorda a tua // Dor igual nunca senti / Quando vi na criancinha / Tão nobre sentir aquele // Com mil beijos prometi / Não bater mais na mãezinha / Chorando abraçado a ele.”
Lidos hoje, estes versos parecem ser apenas os ridículos vestígios de uma cultura miserável em que era comum um homem bater na mulher. A condescendência perante o machismo ou, pelo menos, perante as suas manifestações mais degradantes – dir-se-ia – acabou. Mas continua a haver demasiadas notícias que revelam existir ainda uma injustificada complacência perante a agressividade contra as mulheres e também contra os que, de algum modo, são mais vulneráveis.
O diário catalão
La Vanguardia noticiava na terça-feira passada que o National Centre for Domestic Violence do Reino Unido tinha vindo a alertar, durante os dias anteriores, para o risco de aumento da violência machista à medida que a Inglaterra avançava no campeonato europeu de futebol [1]. E a circunstância de a equipa inglesa ir progredindo nem era propriamente a pior notícia porque as agressões aumentam 38% quando a selecção do país perde. “Quando a Inglaterra é batida, ela também o é”, dizia um cartaz do organismo que luta contra a violência doméstica. Indicando igualmente qual o aumento percentual da brutalidade não havendo derrotas: 26%, a instituição inglesa explicava que o exacerbamento da crueldade se devia ao elevado consumo de álcool dos agressores.
La Vanguardia citava a existência de vários estudos sobre este dramático problema, tendo o mais recente sido publicado este mês de Julho por um centro de investigação da London School of Economics. Após analisar durante oito anos os dados de violência doméstica em Manchester relacionados com a disputa de jogos de futebol, o estudo constatou que a violência em casa vai crescendo após o fim do jogo, atingindo o ponto máximo dez horas depois. Como a pesquisa apurou que a hostilidade é consequência do consumo de álcool, isso significará que os bêbedos precisam de dez horas para caírem para o lado.
O jornal catalão referia ainda que uma mulher colocou no Twitter uma mensagem a oferecer alojamento a qualquer mulher da zona Este de Londres que se sentisse ameaçada. Como era limitado o espaço que ela disponibilizava, pedia que houvesse outras ofertas de um lugar seguro a quem necessitasse de escapar à fúria conjugal. A notícia dava conta das repercussões do apelo, indicando que centenas de mulheres abriram as portas de casa em Londres, Cambridge, Leeds, Manchester, por exemplo, não só para acolher as potenciais vítimas como também, sendo necessário, para as ir buscar. As ofertas de hospedagem não se circunscreviam às mães; elas incluíam, claro, também os filhos.
Pelo menos por uma noite, a solidariedade manifestava-se através de iniciativas concretas. As imagens televisivas dos vândalos enfurecidos após a derrota perante a Itália permitiram imaginar o quão úteis elas terão sido. É preciso fazer muito mais contra a violência machista, mas um gesto no momento certo pode ser também, por vezes, particularmente significativo.
[1] “Juega Inglaterra, te refugio en casa”. La Vanguardia, 13 Jul. 2021
DESTAQUE
É preciso fazer muito mais contra a violência machista, mas um gesto no momento certo pode ser também, por vezes, particularmente significativo.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes